Uma Sinfonia Mundo para Imaginar o (In)Imaginável
Por Carlos Fragateiro com Luís Jorge Monteverde
Na conferência, O que nos pode ensinar um Maestro, Benjamin Zander, conta que quando o apresentaram a Mandela disse:
“É uma honra conhecê-lo, é o primeiro líder da sinfonia.”
Ao que Mandela perguntou: “O que é isso?”:
“Sin-phonie. Sin-fonía, soar juntos, todos os instrumentos, é uma sinfonia. O senhor não lançou uns contra os outros, ouviu toda a gente e criou uma sinfonia” respondeu Zander.
Mandela sorriu e disse: “Gosto, eu gosto”.
Para o maestro a ideia de uma sinfonia é o som de todas as vozes, e não apenas dos melhores músicos, não apenas dos maiores, mas de todos, e hoje o mundo, tal como aconteceu com a África do Sul no tempo de Mandela, necessita duma sinfonia capaz de dar voz a todas as vozes, de tornar visíveis as múltiplas possibilidades de transformar esta terra que é a nossa casa e o nosso futuro. E a língua portuguesa, como uma língua capaz de mobilizar muitas das vozes, seja na perspetiva multidisciplinar ou multilocal, tem todas as condições para se afirmar como uma língua sinfonia de que estes tempos tanto precisam. e, com todas essas vozes, conseguir criar uma (Sin)fonia sobre o Estado do Mundo, uma sinfonia que nos inspire e que inspire cada um a construir ficções e a imaginar o (in)imaginável, pois é isso que estes tempos de pandemia exijem.
Sejamos nós capazes de responder aos desafios que temos pela frente.
E o Futuro? Inteligente e Sensível
Como refere Sampaio da Nóvoa na entrevista que publicamos neste número, “estamos a viver tempos dramáticos… estamos desorientados, perdidos. Não sabemos como agir, nem o que pensar, mas sabemos que precisamos de mudar de via, como escreveu Edgar Morin, e de vida. O presente já não é o que era, e o futuro muito menos”. Por isso, ainda nas suas palavras, “precisamos urgentemente de libertar o futuro, pois o pior que nos poderia acontecer seria considerar esta pandemia como um parêntesis, como se fosse possível, e desejável, regressar ao “normal” que aqui nos trouxe. Precisamos de libertar o futuro de ideias feitas, de preconceitos, de visões únicas e totalitárias do mundo, de comportamentos que estão a destruir a vida e a humanidade. Para isso, é urgente substituir as certezas pelas dúvidas, dar lugar a conversas plurais. Para ele, como para nós, “a lição principal da Covid-19 é a urgência de mudar, de desembrulhar o pensamento, de pensar o que não sabemos”.
Temos que tomar consciência que estamos a viver um tempo que vai obrigar a profundas mudanças, um tempo em que o nosso olhar e a forma como vemos e analisamos o mundo vai ter que se adaptar a um outro quadro de referências, a um outro paradigma. Um processo de mudança complicado, que vai provocar muitas resistências, pois a maioria de nós foi formatada num mundo onde se pensava, e ainda pensa, que é no conflito, na luta dos contrários, que se podem encontrar novas sínteses, num mundo que cria mais muros que pontes, que especializou o conhecimento e perdeu a noção da totalidade, num mundo em que o diálogo é ainda considerado um sinal de fraqueza, onde só nos pediam para estarmos ao lado do bom contra o mau, do branco contra o preto, do cowboy contra o índio, esquecendo-nos que ser inteligentes é ter a capacidade de interligar, de fazer pontes, de criar novas combinações.
Inteligência que, nesta última década vinha a ser muito combatida, como mostra um estudo publicado em 2012, dos professores Andre Spicer (da Cass Business School – City University de Londres) e Mats Alvesson (da Universidade de Lund, na Suécia), onde se refere que a cultura da estupidez estaria na origem da crise financeira da City e que a utilização da totalidade das capacidades intelectuais, da inteligência dos seus funcionários, em estruturas e instituições onde o conhecimento tem um lugar privilegiado, é sistematicamente desencorajada em tempos de crise. “Não pense sobre isso, faça” é a postura desenvolvida, onde a reflexão sobre as questões chatas e inoportunas é sistematicamente desencorajada, numa cultura organizacional a que os autores do estudo chamam de “estupidez funcional”. Quando o modelo de gestão evita toda a forma de confrontação, de troca de ideias e de perspetivas, quando impede que se reflita profundamente sobre cada projeto, está-se a privar do que é a essência do conhecimento, bloqueando a ação e impedindo que se saia do caminho traçado, que se pense “fora da caixa”. A estupidez “inteligente” provoca a instabilidade e a esterilidade da vida intelectual, e, não sendo uma doença mental, não é menos perigosa que a mais perigosa das doenças do espírito porque ameaça a própria vida. Tal como aconteceu nos finais da década de trinta em plena ascensão do nazismo.
Nós que nos habituámos sempre a olhar para os mapas onde o nosso lugar era o centro do mundo, não é nada fácil passar a olhar para o mundo e a desenhar o seu mapa não só com a perspetiva do lugar onde temos a nossa vida, mas a partir de diferentes lugares e perspetivas, numa mudança urgente e que constitui uma das grandes riquezas e desafios do conhecimento de hoje. Mas é isso que urgentemente temos que fazer.
O Poder da Imaginação ou Imaginar o (In)Imaginável
Para que o futuro ou os futuros sejam possíveis, para que cada um seja único no mundo, necessitamos urgentemente que os cidadãos construtores de pontes e conspiradores do futuro, sempre inspirados pelos contributos daqueles a que chamamos os cromos da língua, se ponham em marcha, se liguem e se mobilizem por todo o lado, para que todos ouçam, como nos anos 60 foram obrigados a ouvir Marthim Luther King, que nós temos um sonho e que o nosso sonho é defender um mundo onde dê gosto e valha a pena viver, onde seja possível ser feliz.
Olhemos para a Califórnia e tentemos perceber como é que ela criou condições para assumir o papel de líder e ajudar o mundo a efetuar a transição da sociedade industrial à sociedade post-industrial, do material ao logiciel, do aço ao plástico, do materialismo ao misticismo. Para o historiador William Irwin Thompson , não é tanto um estado da união mas um estado de espírito, uma imagi-nação que há muito tempo fez um corte com a nossa realidade, tendo sido a primeira a descobrir que é a imaginação que tem o poder sobre a realidade e não o contrário. Nela o Oriente e o Ocidente fazem a sua fusão o que é uma mais valia, um enriquecimento, com uma multiplicidade de culturas resultante da convergência de dois fluxos de emigrantes, asiático e a europeu. A maioria dos membros da Academia Nacional das Ciências são provenientes da Califórnia, é aí que cerca de 80% da ciência pura da União se efetua e onde se encontram mais prémios Nobel que em qualquer outro Estado, e as artes, enquanto comércio e expressão da vanguarda, representam o negócio principal da Califórnia.
Imaginar o (in)imaginável é um desafio a que há muito os cientistas têm sido preparados para responder, de tal forma que instituições como o CERN, Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire, abriram as suas instalações e os seus projetos aos artistas para trabalharem a partir dos materiais da investigação, e fazem-no porque têm consciência que o cruzamento entre artistas e cientistas traz ao CERN outros modos de olhar as novas realidades com que os cientistas são constantemente confrontados, permitindo-lhes, ao se confrontarem com outros modos de ler e traduzir essas novas realidades, treinar e desenvolver a sua criatividade. Criatividade que é fundamental, sobretudo no domínio da física fundamental, a física das partículas em que trabalham no CERN, para compreenderem as realidades inimagináveis que têm, cada vez mais, de estar preparados para imaginar.
Hoje já não são só os cientistas de laboratórios como os do CERN que têm que estar preparados para imaginar o inimaginável, mas todos nós e em todas as dimensões da nossa vida, correndo o risco, se não o fizermos, de perdermos a oportunidade de inventar o futuro ou os futuros possíveis.
É a Hora
Quando o Papa Francisco anunciou que as Jornadas Mundiais da Juventude se realizariam em Lisboa, o Presidente da República, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que essa decisão aconteceu porque Portugal é o país que constitui a “melhor plataforma giratória para todos os continentes e sobretudo para África”. Para o Vaticano era essencial a abertura a África, continente onde nunca houve estas jornadas, e daí o facto desta vitória não ser, na perspetiva do Presidente da República, só de Lisboa, mas “uma vitória da língua portuguesa e da lusofonia. Para António Costa, o primeiro ministro, a sua visita à Índia, e a forma como foi recebido enquanto pessoa com raízes na Índia e integrante da sua diáspora, ajudou-o a aprofundar e a tomar mais consciência de como, neste mundo cada vez mais global, a importância da língua e das memórias que ela transporta, determinantes para ver e ler o mundo duma determinada forma, são hoje consideradas estratégicas para criar ou cimentar relações e cumplicidades ao nível do mundo.
É a Hora, como diria Pessoa, de Portugal apostar numa das suas maiores riquezas, a língua, e assumir-se duma forma efetiva como a plataforma giratória para todos os continentes e sobretudo para África, de que falava o Presidente da República, potenciando as múltiplas diásporas que em português estão espalhadas pelo mundo, uma realidade de cuja importância o Primeiro-Ministro tomou ainda mais consciência quando visitou a Índia.
O facto de termos uma língua que veicula dentro de si todos os olhares e culturas do Mundo, permite, duma forma natural e equânime, juntar à volta da mesma mesa esses diferentes olhares e culturas, oportunidade única para aliar a dimensão multidisciplinar com a dimensão multilocal.
Uma Estratégia para Ler o Mundo em Português
Esta língua, a nossa, celebrou este ano o seu primeiro dia mundial, 5 de maio, aprovado pela UNESCO como Dia Mundial da Língua Portuguesa, o que obriga o mundo que pensa e fala em português a provar que tem hoje todas as condições para se assumir como um laboratório do diálogo e contaminação de culturas. Agora já não como império, mas como plataforma ou interface para a emergência de uma outra cultura, a cultura do conhecimento, mostrando como esta língua é capaz de contribuir duma forma única para responder aos desafios centrais com que hoje a nossa Terra Pátria se confronta, nomeadamente na(o):
– Emergência de um novo quadro de pensamento, um novo paradigma. O quadro de especialistas em português que, tanto ao nível das neurociências, como das redes, da informação e dos algoritmos que a condicionam ou controlam, é riquíssimo e pode permitir ideias únicas;
– Defesa do planeta terra, desta terra mãe, afirmando-se como um parceiro ativo no combate à emergência climática, como uma língua verde/azul. Na nossa língua há pulmões através dos quais o mundo respira: a Amazónia e o Parque Natural de Óbo, em São Tomé e Príncipe, mas há também as florestas tropicais da África lusófona e de Timor, há os três oceanos que banham as nossas costas e o Mediterrâneo, há uma imensidade de ecossistemas que sofrem e sem os quais nos empobrecemos;
– Desafio das migrações e o afirmar-se como uma língua amiga e solidária. Em 2021, com Portugal na Presidência da União Europeia, que melhor oportunidade para nos debruçarmos sobre o Mediterrâneo, esse mundo feito de mundos de que nos fala Braudel, hoje também um triste mundo de refugiados, de migrantes desesperados que procuram na Europa os braços abertos do humanismo que lhes vendemos durante séculos e que hoje lhes negamos?
– Mobilização e o comprometimento da juventude como os atores centrais capazes de responder e antecipar os desafios com que o futuro do planeta nos vai confrontar.
E em 2023, com as Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, que o mesmo é dizer as Jornadas Mundiais do Futuro que não sabemos se temos para legar aos nossos filhos. Os jovens do mundo vêm ter connosco e, com eles, podemos, via juventude africana, abraçar o Índico, abraçar os três mares que abraçam África e estreitarmo-nos com a francofonia, tão presente em África e tão próxima da lusofonia neste continente.
Naturalmente que um projeto desta dimensão tem que ser capaz de mobilizar tanto os cientistas, como os filósofos, os artistas ou os tecnólogos, pois só assim temos a possibilidades de confrontar os múltiplos modos de ler a realidade e criar condições para cada um se confrontar com outros modos de olhar as novas realidades com que somos constantemente confrontados, permitindo-lhes, ao se confrontarem com outros modos de ler e traduzir essas novas realidades, treinar e desenvolver a sua criatividade. Criatividade que é fundamental para que cada um de nós possa compreender as realidades inimagináveis que temos, cada vez mais, de estar preparados para imaginar em todas as dimensões da nossa vida, correndo o risco, se não o fizermos, de perdermos a oportunidade de inventar o futuro ou os futuros possíveis.
Tem também que se apoiar numa teia de cumplicidades que atravesse e ligue pessoas e parceiros deste universo da língua, pessoas e parceiros que sejam os pilares e as plataformas capazes de potenciar o lançamento de projetos ponte que atravessem os mares e liguem os diferentes países e parceiros.
Estes cadernos, ou este modo de Ler o Mundo em Português, querem ser um fórum/ incubadora/ laboratório de projetos de e para este universo, uma grande rede de comunicação/teia de cumplicidades que atravesse os países e os oceanos, de Timor ao Brasil, e mobilize as diásporas de língua portuguesa que estão espalhadas por todo o mundo.
Com a consciência de que os mares são os espaços por excelência da não-fronteira, os espaços de referência para a construção das pontes de que o nosso tempo tanto necessita, pontes que são o melhor caminho para tratar as temáticas e/ou as Ideias que atravessam e desafiam o universo que pensa e fala em português.