A Música e a Língua Portuguesa como ponte de referência em Moçambique – uma linguagem para o Mundo?

Moçambique… palavra que ecoava em minha mente quando aqui aterrei em Janeiro de 2018. À parte de algumas leituras efectuadas em termos da História deste país, do seu passado longínquo e mais recente, tudo era novo para mim. Ao lutar pela implementação de projectos de índole diversa (educação, cultura, saúde, agricultura, património) por algumas ONG’s e Associações do centro e norte do país, paralelamente ao decorrer da minha actividade enquanto arqueólogo sénior, fui-me apercebendo de um elemento unificador de todas estas etnias, a Música!

Comecei a tentar olhar o mundo e o que se apresentava ao meu redor, com os olhos do outro, observando e escutando as vivências das pessoas comuns, as suas danças, as suas rezas, as suas crenças, os seus mitos. Pensar fora da minha caixa europeia. Reinventar modos de ser, estar e pensar, pois como dizia Heráclito: “Nenhum Homem entra no mesmo Rio duas vezes, pois não é o mesmo Rio e ele não é o mesmo Homem.” Verifiquei então que o imaginário animista constitui a realidade do comum dos moçambicanos. Um mundo povoado por ligações à Natureza enquanto predomínio do sagrado (árvores, montanhas, lagoas e túmulos) e do culto e respeito aos antepassados e suas marcas – como a arte rupestre. Este imaginário influencia todas as facetas da vida de um moçambicano, desde o primeiro instante em que rasga o ventre de sua mãe até ao momento em que retorna ao seio de sua mãe terra. As recolhas destes aspectos lendários, desta oralidade visível do campo e da rua têm seguido à margem da minha actividade arqueológica pelo centro e norte do país. Já foram recolhidas até ao momento largas centenas de histórias dos cidadãos comuns, que têm vindo a ser publicadas aos poucos ou disponibilizadas online.

Nascentes pacíficas (Estaquinha, Distrito do Búzi, Província de Sofala)

http://patrimoniosimbolosidentidades.blogspot.com/2020/01/lendas-e-mitos-rurais-e-urbanos-de.html

Verifiquei então, que nos registos lendários actuais, a presença da música ou do acto do canto e da dança era igualmente uma constante (como na Lenda dos Homens Pássaro e a da Lagoa de Nhambande de Machanga, a Ilha de Cantatouro perto da ilha de Matemo, apenas para citar alguns exemplos).

Dança dos Niau (Tete)
Ilustração de Dança dos Niau (Tete)

Em alguns momentos os rituais de cântico e de dança das jovens raparigas servem como exercício para as danças futuras que executarão para seus esposos ou nas suas próprias cerimónias exclusivamente femininas.

Os cânticos também são utilizados em rituais de exorcismos tradicionais, preconizados no Norte de Moçambique pelos Fungi (Guardiães ou Professores), figuras que conseguem atenuar ou retirar os espíritos maus, os Djinn1. No processo de tratamento, fazem-se algumas cerimónias, uma espécie de Dança / Canto, acompanhados de alguns alimentos, incensos [como o célebre e com um odor incomparável Lubani] em celebração.

Todos estes mundos se encontram a desaparecer, por virtude da disseminação das novas tecnologias pelas camadas jovens da população que já não guardam nas suas memórias as histórias que eram passadas de geração em geração pela oralidade junto às fogueiras ou em outros locais de partilha comunitária.

A epidemia SARS Covid que se tem feito sentir a uma escala global, está a causar uma mortandade elevada entre os guardiães das Memórias das Aldeias e das Cidades.

Bailarinas das Capulanas do Arco-Íris (Quitupo, Palma, Cabo Delgado)

Por esse facto, iniciamos inicialmente a título individual, um Projecto de recolha de Contos, Lendas, Cânticos, Danças ligados (ou não) a sítios de interesse Patrimonial / Arqueológico em 2018 (contando a espaços com as colaborações de Associações e ONG’s locais, como é o caso da Associação Kupendana, sedeada na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado). Buscamos assim:

  1. Recolher e inventariar (em áudio e em vídeo) todos os contos, lendas, mitos, cânticos e danças tradicionais que nos seja possível, interpelando sempre o comum dos moçambicanos;

  2. Publicar e divulgar estas recolhas pelo maior número de leitores, investigadores, colegas possíveis (jornais, revistas, artigos, monografias, redes sociais, blogs, sites, etc…);

  3. Inserir estas recolhas em Projectos de Recolha e Protecção Patrimonial Material e Imaterial, com valências multifacetadas, de forma a passarem a figurar como partes inalienáveis da Identidade Humana.

Falta-nos um maior intercâmbio cultural. É importante que as pontes que se estabelecem façam circular a cultura.

Ungulani Ba Ka Khosa

ReConstruindo… maticando (Barrabarane, Palma, Cabo Delgado)

A musicalidade moçambicana nasce do seu talento inato pela dança e pela música e, em todas as situações de lazer e convívio que íamos observando, verificávamos que assim o era… tudo, ou quase, servia de desculpa para gingar um pouco e soltar a voz, pois a vida corrente é um contínuo desafio e constante avolumar de dificuldades e superação… que se sucedem como dínamo catalisador do espírito das gentes.

O dia-a-dia dos moçambicanos marca o compasso de um eterno acto de Reconstrução (pós – secas, cheias, furacões consecutivos [Idái e Kenneth, os últimos], guerrilhas e pandemias). Este acto contínuo moldou a fibra com que nos deparamos nos olhares de muitos, que na labuta e lutas diárias em seus actos quer nas artes da faina da pesca, no capinar das machambas, nos regateares dos mercados lutam seguindo com os seus códigos de conduta, por mais um dia debaixo do Sol e à face da Mãe Terra. Luta e Celebração da Vida.

Ao falarmos com alguns colegas e amigos moçambicanos, com os quais pugnamos pela existência de uma banda num projecto pelo Norte de Moçambique (banda que durou até à epidemia chegar às costas do Índico), muitos foram os que aderiram logo desde a primeira hora, afirmando que a música para eles era o que lhes permitia sonhar, conviver, libertar a mente dos problemas e anseios diários. A alegria nos seus rostos era genuinamente viva e contagiante… apesar de ter sido um projecto efémero foi algo marcante para mim e que sempre povoará o meu espírito, quando nas futuras frias noites alentejanas um dia me recordar e recontar aos meus netos, ao pormenor, as linhas de todos estes rostos, a doçura das suas vozes, a miríade de cheiros [como o do característico incenso Lubani], a afabilidade das gentes, o inusitado de certas situações, a simplicidade de múltiplos actos… não é possível vivenciar todo o imenso património humano existente, por vezes perdido na imensidão do Rovuma ao Maputo e ficar-lhe indiferente…

Não é mesmo nada fácil, despirmo-nos de noções e visões eurocêntricas do mundo, praticando o acto contínuo do esvaziar da mente dos nossos julgamentos, preconceitos e aversões, mas esta deverá porventura ser a lição que a pandemia nos trouxe, de romper com as xenofobias das partes que de tal forma nunca actuarão ou compreenderão a Humanidade como um todo. E que o trabalho em equipa supera em muitos decibéis a acção meramente e marcadamente egocêntrica, orgulhosamente individualista.

“Preciso ser um outro para ser eu mesmo.”

Mia Couto

Navegando a Esperança (Maganja, Palma, Cabo Delgado)
Navegando a Esperança (Maganja, Palma, Cabo Delgado)

À recolha das Lendas e dos Mitos, outras ideias começaram a gerar-se na minha mente… porque não gravar igualmente as danças e a música tradicionais moçambicanas? Relembrando-me das recolhas contínuas do Tiago Pereira quando em 2011 iniciou no terreno, em Portugal, o Projecto da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPAGDP), numa das nossas conversas no Messenger, quase que em tom de brincadeira, o Tiago e eu decidimos por avançar…. E assim, um dos últimos Projectos pelo qual vimos lutando nos últimos tempos por implementar em Moçambique trata-se do Projecto A Música Moçambicana a Gostar Dela Própria como ligação à sua Alma Mater o Projecto da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria. Os esforços por parte do nosso Director Artístico Tiago Pereira e membros da sua equipa, como é o caso da Cristina Enes Garcia têm sido inexcedíveis. O Projecto vai-se mantendo à tona da água e prosseguindo pouco a pouco – com recolhas efectuadas até ao momento essencialmente nas Províncias de Cabo Delgado e de Maputo – como elo de ligação entre a Língua Portuguesa e os múltiplos Dialectos Locais Moçambicanos, recorrendo a filmagens digamos quase que artesanais, executadas por telemóveis e colegas espalhados por Moçambique e reenviadas continuamente – sempre que epidemia e dificuldades de comunicações o permitem – até ao Tiago Pereira, seu receptor final em Portugal.

Filmagem para o Projecto da MMAGDP (Pemba, Cabo Delgado)
Filmagem para o Projecto da MMAGDP (Pemba, Cabo Delgado)

O sonho mais urgente para a prossecução deste projecto prendia-se com a aquisição de uma pequena câmara de filmar, que com as suas características permitiria dar às pessoas filmadas a dignidade que as suas músicas, danças, lendas e histórias nos merecem, como bem o afirmava o Tiago Velhinha Pereira https://marcopvalente.wixsite.com/mmagdp . Num acto de partilha contínua para a aldeia global, colocando em linha à posteriori um Corpus Musicológico da sociedade moçambicana comum (inicialmente o Tiago Pereira idealizou e lançou uma página na rede social Facebook https://web.facebook.com/MarcoPauloValente). Com o evoluir do projecto e filmagem a ideia é a de criar um canal no YouTube, conta no Instagram e demais redes sociais, contribuindo assim não só para a divulgação do projecto, mas também para a sua eternização – pelo menos enquanto a internet estiver para durar. Em parceria com a Associação da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (Serpins, Portugal), Associação Kupendana (Pemba, Cabo Delgado, Moçambique) e ICCIRA (International Cultural and Creative Industries Regulatory Authority, Londres, Reino Unido), temos buscado implementar um Projecto mais grandioso com equipas de filmagens e entrevistas constituídas exclusivamente por Mulheres. Forma de implementar uma paridade de inteira justiça e fomentando a formação dessas mesmas técnicas para a eventualidade do futuro deste projecto em si e da criação, quiçá, de um canal noticioso regional, onde a música tradicional, claro está, constituiria uma presença constante e forte. As portas a que batemos têm-se mantido fechadas, e o projecto maior em banho-maria, mas talvez um dia consigamos bater à porta certa. Sonhos e ideias presentes, porventura realidades de um futuro almejado para um tempo próximo.

Esta é uma visão que nos motiva, enleia e anima. O da Música Moçambicana do comum dos seus cidadãos, como um Diálogo e Ponte entre mundos, línguas e dialectos diversos, congregando assim múltiplas formas de falar e de ver o Mundo, com o Português sempre como ponte de ligação.

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro.

Mia Couto

1 Djin / Jeny / Geny, estes génios das lâmpadas são apresentados geralmente como criaturas benéficas, sempre dispostas a realizar os desejos dos seus donos. Essa transformação ocorreu no início do século XVIII, quando Antoine Galland traduziu erradamente a palavra Jinni para Geni. Os Djinn são demónios com cerca de 4.500 anos. De acordo com o Corão, Deus criou os Djinn a partir do “fogo de um vento flamejante”. Só muito tempo mais tarde é que os humanos teriam sido criados a partir de da lama e do barro. A raça dos Djinn está plena de demónios e espíritos, cada qual com o seu lugar no Pandemónio. Existem os Shaitan (origem da palavra Satã), Nasnas, Ghuls, Ifrit e Marid. Marid são os que conhecemos usualmente presos em garrafas e são os mais poderosos e maléficos de todos os Djinn. Daí a ironia da representação, por exemplo, no filme da Disney acerca de Aladino, de um Génio da Lâmpada com boa índole.” (VALENTE:2019).

AUTOR DO ARTIGO

MARCO VALENTE

 
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