João Seria, uma lenda

Sótxi sa sala mon

(A sorte vem na palma da mão)

Anos oitenta! Quase a meio, quase a dez anos de distância da independência e o meu regresso em cheio ao berço de Batepá, às raízes abençoadas de uma placenta que ficara enterrada no quintal à espera que eu abrisse de novo a porta materna. E abri. Com alegrias inesperadas que o tempo da reinfância volta sempre ao útero das nossas memórias. Como berlinde em mão de criança, joga-se longe mas quer-se de volta.

Como foi inesquecível o tocar a mão da mãe ausente, o borboletar pelos velhos caminhos do mato, o saborear paladares há muito enterrados nas ânforas de uma Europa que nada tem para nos ensinar a não ser a forma diplomática como nos obriga, discretamente, a relegar para segundo plano todos os outros continentes, sobretudo o continente da terra-mãe.

Por isso eu quis percorrer todo o tempo de ausência e de distância naquele ano de oitenta e cinco quando tudo era novo, o partido único, os familiares chegados do Gabão, de Angola, do Senegal, os cooperantes de países tão estranhos naquela altura como o eram a Polónia, a URSS, a República Democrática Alemã, vulgo RDA, as lojas do povo, os cubanos que achavam graça aos garrafões que no alto das palmeiras exibiam o néctar que nos faz cantar e dançar após a fermentação, o som das vagas que nos trazem recados de algas e corais e nos transmitem na pele a vontade da partida enleada ao sonho da descoberta…

© Trinaliv, CC BY-SA 4.0 , via Wikimedia Commons

Tudo era novo, tudo era diferente, tudo era um pedaço de mim arrancado à meninice que aos três anos deixou escondida na bruma a esfera armilar de sons ébrios de encantamento.

E os sons regressaram ao ventre, ao coração, aos lábios que tentavam soletrar as músicas que os conjuntos iam passando na rádio. E pela manhã era o Sangazuza com “Hozé djá di Nanzalé acompanhado por músicos que o sucesso foi esculpindo seus nomes nas páginas da ilha; era Sum Alvarinho a dar força ao ouro da terra: Cacau é ouro, é prata/ é nosso diamante também…; eram “Os Untués” que a voz magistral do Zé Aragão transportava até àquela varanda de Batepá cantando Sam Djinga, Buduê, uma canção que me extasiava ao mesmo tempo que ia pedindo para me fazerem a tradução pois naquela época a língua materna ainda me era difícil de falar e de compreender.

“Minha filha amanhã tem festa no Budo Budo. É fundão”

“E o que é fundão?”

“É festa do povo mesmo”

Como aquela resposta vinha de encontro aos meus desejos. Um fundão! Uma festa do povo! Sempre fui uma amante do povo, essa gente que é capaz de se sacrificar para ajudar um amigo… Não há nada mais puro, mais verdadeiro que um abraço dado por alguém do povo, aquele abraço sem mentiras, sem evasivas, um abraço sentido, apertado contra o peito, profundamente solto de preconceitos de elites e outras aldrabices. Portanto, ao pensar que me levavam a dançar num fundão estava definitivamente colado à minha pele aquele momento que viria a seguir. Vestido às bolas, vermelho e preto, cabelo cheio de trancinhas que tia Bibi resolvera enfeitar-me a cabeça à moda da terra e o carro de tio Zézinho a deslizar remansoso para a cidade-capital a caminho de Budo Budo. Um mundo de cores, profusão de línguas, cheiros, aromas que se iam soltando dos ares envoltos em pratos deliciosos, em saquinhos donde se pressupunha estarem guardadas todas as iguarias exóticas das ilhas do cacau.

CostaPPPR, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

O conjunto tocava e inebriava os ares com palavras que pareciam saídas de um lugar místico, ainda por encontrar. Os sons musicais faziam lembrar as Antilhas ou o Zaire… Os pares enlaçavam-se rodopiando, colando os rostos como se quisessem perpetuar aquele instante.

Chá do Príncipe, Porcelana ed.

“Que bem que toca o conjunto!”

“É África Negra minha filha… É África Negra!”

“Bom mesmo é João Seria, o vocalista!… sobrinha ouve!”

E João Seria cantava: “Aninha muê

Aninha ê

Aninha muê antê quê d’já?”

Também rodopiei, também enlacei e fui enlaçada naquela festa popular mas o que deveras me inebriou foi a voz do homem que tinha um nome a fazer lembrar um tempo verbal, Seria. E as canções continuaram a encher a noite quente do equador:

Iá kalambola Nova Moka

Ku flá ê s’ka bá posson

Pê bin ganho ô plezentxi

Depois de Carambola veio Angélica e o ritmo que perdurou até às cinco da manhã tinha o sabor de uma nação que acabava de proclamar a sua independência. E a voz de João Seria extasiou os meus dias de sonho na ilha que me viu nascer mas não crescer…

Alice muê, Alice mô ô

Alice lemblá, Alice muê, jóiá mô

Ngá cumé cu áuá uê ni uê ô

Ngá bêbê cu áuá uê ni uê ô

Alice tê péna mú

Madalena, Madalena,

Madalena meu amor, Madalena, Madalena, pensa bem antes de fazer

o amor é como lua, só di noite é que se brilha,….

é daqui, é di lá

é daqui, é di lá

kidaleô…iá calambólá nóva móca,

cu flá ê scá bá póssón

ma fála ná buá di flá fá é

Só cu João Seria flá : xi bô tasson ni libá gélu

bô scá tasson ni libá dójó…

loja matú bô bê ê

bô bê cuá cú mundu sá

é daqui, é di lá

é daqui, é di la

Durante anos segui-lhe os passos. Soube das suas digressões, Portugal, Cabo Verde, Argélia, Angola… Comprei os discos, os CD’s. Voltei à terra e de todas as vezes tinha que saber onde estava o “África Negra” e João Seria. E fui de novo aos fundões, ao Riboque de Santana, a Água Arroz, a Ribeira Afonso, às festas de Deus Pai, de Santa Mukambá, da Peregrina, de Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Neves…

E fiquei com essa voz gravada até hoje.

Assisti ao seu regresso de Luanda nos anos noventa, se a memória não me falha, após uma digressão retumbante por Angola. Também fui ao aeroporto. Um mar de gente numa euforia colossal de tal forma que me perdi das primas que só reencontrei em casa! Como toda a gente vozeei em uníssono o nome do cantor. E João Seria percorreu a distância do aeroporto ao centro da cidade entre gritos e aplausos como se fosse um rei! E era…! Nem certos presidentes tiveram aquele banho de multidão, nunca! Quem como ele fez tamanha publicidade ao país insular escondido no umbigo do mundo é de facto um rei! Há um provérbio muito bonito que diz “Todo aquele que fez crescer uma seara onde antes não havia nada fez mais pela pátria que todos os políticos juntos” E João Seria fez crescer milhares de searas. As suas canções produziram alegria em milhares de seres, fizeram rodopiar milhares de pares apaixonados, fizeram florir palavras doces onde antes só havia desconsolo e desilusão…

Percorro o youtube em busca de novos êxitos, leio as notícias sobre o seu desmembramento mas soube também que anos mais tarde os África Negra se reencontraram.

Fico feliz por saber que, após anos de silêncio provocados pela inépcia de quem não ama nem dá à cultura o valor que ela merece, João Seria volta a oferecer a sua voz, o seu talento, a sua candura tal como naqueles anos oitenta quando Aninha muê me fez deliciar e orgulhar de ser santomense.

“A sorte vem na palma da mão” disseste tu um dia numa entrevista em que te perguntaram como conseguias tantos êxitos.

Alguém te apelidou “o General” mas só isso não chega para a grandeza da tua voz, dos teus êxitos, das delícias com que encantaste e ainda encantas tantas noites a milhares de corações sedentos de enleios. General… rei… príncipe… sim, este chá do Príncipe cheio de contos também é para ti pois estás em todas as lembranças da ilha que te viu nascer! Estás também em outros países aqui citados, Angola, Cabo Verde por onde andaste com êxitos retumbantes!

Cantando as tuas melodias aprendi mais rápido a língua materna de que sempre te orgulhaste. E levaste por esses horizontes fora…

Quê Santomé

Quê Santomé

Quê Santomé

Quê Santomé

Quê Santomé

Quê Santomé

Tela se sa txoco ê

Maji tela Sa xá likeza

Kwá ku ska fate

Sa kontroli tan

© Husond, via Wikimedia Commons

Só uma vez te prestaram homenagem. Infelizmente, por razões de trabalho, não consegui estar presente mas vi depois no youtube e rodopiei quando no final cantaste “Tira o pé do chão…segura segura por favor… tira o pé do chão!” Foi no 26º programa de “Nós por lá Especial fim de ano – 2011”. Tão pouco João Seria, tão pouco para quem tem feito tanto pela terra onde nasceu… Atrevo-me mesmo a dizer que o teu coração se alegra de cada vez que cantas as ilhas do cacau e as suas gentes, pouco te importando as homenagens; essas ficam para os que pouco fazem!!! Sempre foi assim!

Mesmo incógnita segui e seguirei sempre o teu percurso, João Seria. Nas minhas andanças pelo mundo levarei no meu peito “Quê Santomé”, “Alice”, “Maia muê”, “Pêdlelo” “Angélica” e a tua voz há-de estender-se mar além na minha alma e na minha poesia.

Dediquei-te um poema no livro “O Cruzeiro do Sul” mas nunca to ofereci. Errei, confesso. Devia tê-lo feito, ter ido a tua casa mas sabes… sempre de malas na mão… e depois… era tão pouco! Merecias e mereces muito mais.

Quando te ouço cantar:

“bô pó kumê bebê ami na té odjo bô fá

Kuá dê ku sa klave sá ximintele sá un só bô pó

Sá lico kô ká balá

Ami tém ká bala

Só só só na fê luxo dami fá” ,

penso que afinal também és poeta e pensador. Só assim se justifica a lição que deixas a pobres e a ricos – “ todos vamos para o cemitério e por isso não vale a pena ódios nem invejas.” Assim deveria ser mas infelizmente poucos se lembram que isto é uma passagem.

Embora não o saibas nem nunca o tenhas sonhado digo-te hoje que nas letras das tuas canções aprendi muito sobre o nosso povo, sobre nós, sobre a nossa maneira de viver e de sentir. Por tudo isto, João Seria, a minha eterna gratidão.

Por tanto que tens feito pela nossa identidade, pela nossa afirmação como povo soberano, gostaria de ter ainda a felicidade de ver o teu nome encher as páginas da cultura do nosso diminuto mas grande país, esse país que tu representas, João Seria, esse país que tu cantas e encantas há tantas décadas que o teu tempo, tenho a certeza, há de ser eterno.

AUTORA DO ARTIGO

OLINDA BEJA in “Chá do Príncipe” (Rosa de Porcelana edit.)

 
Receber informações

Deixe-nos o seu e-mail para receber avisos sobre a publicação de novos artigos ou outras informações.