Da Memória ao Futuro: Uma Viagem nesta Língua, na Nossa Língua

Da Memória ao Futuro

Uma Viagem nesta Língua, na Nossa Língua

Há mais de 500 anos, os portugueses, os mais aventureiros, saíram de Lisboa e partiram para o mar, não para aquele que seria o mais cómodo, o Mediterrâneo, mas para o desconhecido, para aquele que poderia ser mais perigoso e que poderia levá-los em direção ao abismo, o Atlântico. Essa decisão levou ao encontro de e com outros mundos, até então desconhecidos para os europeus, levou à criação do que hoje chamam a primeira aldeia global, e permitiu que Lisboa tivesse sido, nessa altura, a primeira cidade global.

No século XVI a rua mais rica do mundo ficava em Lisboa, capital de um vasto império ultramarino. Joias, porcelanas, sedas, especiarias e outras mercadorias exóticas importadas de África, do Brasil e da Ásia estavam à venda na rua Nova dos Mercadores.
Nos gloriosos tempos das Descobertas, (…) Lisboa era o centro comercial do novo mundo que as caravelas ligavam nas rotas marítimas.

Exposição Cidade Global do Museu Nacional de Arte Antiga

Retrato de Camões por Fernão Gomes, Public domain, via Wikimedia Commons

Hoje Lisboa já não é a cidade mais global do mundo, nem Portugal um vasto Império, e a atual pandemia está a obrigar-nos, tal como no séc. XVI, a deixar de olhar e pensar o mundo a partir do nosso umbigo, da nossa casa ou do nosso país como centro de tudo, está a mostrar-nos que não há muros que defendam o nosso bem-estar, se esse bem-estar não existir em todo o mundo.

Estamos a viver um tempo de mudanças, um tempo em que vamos ser obrigados a arriscar, a antecipar os futuros possíveis, antes que esse futuro tome conta de nós e nos leve em direção ao abismo. Estamos a viver um tempo em que somos desafiados a arriscar o futuro e esse desafio só será vencido se …

Acreditarmos na força da Imaginação

… e que tudo aquilo que imaginamos se pode tornar realidade, pois é a imaginação que tem o poder sobre a realidade e não o contrário, com a convicção de que esperar não é saber e que quem sabe faz a hora, não espera acontecer, como diz a canção.

Acreditarmos que Portugal, tal como há 500 anos, pode reassumir um papel estratégico na Europa e no Mundo, já não como potência e império, mas como plataforma para a emergência de uma outra cultura, a cultura do conhecimento e da sensibilidade. Acreditarmos que Portugal pode ser um espaço de encontros, de troca e de criação de cumplicidades entre pessoas e projetos de todo o lado, que pode ser um espaço Plataforma onde se simulam os cenários para o futuro ou os futuros possíveis, cenários que não se limitarão a descrever o mundo como ele é, mas a criar uma nova forma de o ver, imaginando o i(ni)maginável, sonhando o impossível e fazendo com que ele aconteça.

O que obriga a…

Aprender um Outro Modo de Ver as Coisas

“Nas alturas em que o reino do humano me parece mais condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar para outro espaço. Não estou a falar de fugas para o sonho ou para o irracional. Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra ótica, e outros métodos de conhecimento e análise”.

Italo Calvino

Há uns tempos, num seminário em que estava a colaborar, pedi a um doutorando angolano para desenhar o mapa do mundo e, para surpresa minha, ele começou a desenhá-lo pelo continente africano, e não pela Europa como nós, portugueses e europeus, o fazemos. Fiz o mesmo a um brasileiro que desenhou o mundo a partir do continente americano e concluí que se tivesse pedido o mesmo a um macaense ele começaria pelo continente asiático e, a um timorense, pelo australiano.

É em momentos como estes que tomamos consciência em como é limitada a representação que temos do mundo, uma representação que, olhasse para ela de que lado olhasse, deveria ter sempre a Europa no centro. É em momentos como estes que nos sentimos incapazes de visualizar o mundo de outra forma da que era apresentado no mapa que estava sempre presente nas nossas escolas, com a América tão distante da China, de tal forma que hoje, sabendo claramente que a terra é redonda, ainda penso nas longas viagens que os americanos têm de fazer para chegar perto da China, ignorando completamente o oceano Pacífico e que as viagens não têm necessariamente de passar pela Europa, que se podem fazer noutro sentido.

O mesmo aconteceu quando descobri dois livros sobre personalidades africanas, a Rainha Jinga e Gungunhana. A primeira era-me totalmente desconhecida, já a Gungunhana associava uma foto dos tempos de escola onde um negro enorme estava sentado no chão e com as mãos presas, mostrando o poder dos portugueses em África. Tal como o que aconteceu com a minha perceção do mapa, a história de África fez-se tendo os europeus e colonizadores no centro, como se essa história só tivesse começado com a sua chegada, e, tal como aconteceu connosco, também os africanos cresceram a ouvir uma história, a sua história, contada na perspetiva dos colonizadores, contada por aqueles que tiveram os meios necessários para a escrever.

Por tudo isto é que é necessário descolonizar os Espíritos e isso só se consegue com o auxilio de uma…

Língua que transporta todos os Olhares e Culturas do Mundo

Sou carioca de Goa, de Angola e da Guiné
Cabo Verde, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé
Macau, Portugal, mas vim pela Galícia
Que a vida é uma delícia temperada nesse sal
Cabral descobriu muito menos do que eu
Os meus descobrimentos não estão nos museus
Nem nos livros de História, mas estão na minha memória
E na dos meus amigos que navegam comigo1

Gabriel o Pensador, com Boss AC

A pandemia mostrou-nos que os desafios de hoje exigem respostas resultantes do cruzamento de visões múltiplas, de diferentes perspetivas, onde se alie o multidisciplinar ao multilocal. E o instrumento que permite fazê-lo está ao nosso alcance, a nossa língua, uma língua que traz dentro de si múltiplos olhares e se alimenta de múltiplas culturas.

A língua portuguesa é uma língua de três mares e, no passado, foi mesmo a língua franca do Índico, porque língua de um povo demasiado pequeno e frágil para se impor como potência permanente. A sua grande vantagem estratégica é ser uma língua de diálogo e encontro de mundos, ainda mais num tempo em que parece emergir a tendência para se levantarem mais muros que pontes, um tempo onde o diálogo e troca de pontos de vista é fundamental e urgente para se inventarem outros futuros.

Mas para que isso se torne realidade é necessário provocar o…

Reencontro com a África

“Ah, génio lusíada, quando acertas! Quando te não abastardas! Quando te medes com o impossível! Fazes de um banco de coral o centro geométrico da concórdia do mundo!»

Miguel Torga

 

Nos últimos tempos ouvimos falar de bazukas e vitaminas, como se os fundos europeus fossem instrumentos de guerra pura e dura. Bazuka europeia é muito colonial, vitamina pouco ambiciosa, só reforça a resistência e as imunidades, quando o desafio é que nos próximos 5 anos aconteça uma grande mudança, se inicie uma nova era. E o problema é que ainda não descobrimos a poção que nos vai ajudar a consegui-lo.

Até 2026, a data mágica, vão realizar-se em Lisboa, em 2023, as Jornadas Mundiais da Juventude, e, em 2024, comemoram-se os 50 anos do 25 de abril. Os dois acontecimentos têm África em comum, o Vaticano quer que as Jornadas sejam uma abertura para África, continente onde nunca se realizaram, e o 25 de abril representou o início duma relação entre parceiros com os novos países africanos independentes. Duas realizações que podem ser a oportunidade para pensar a nossa relação com África, para ajudar a sarar as feridas que lhe fomos provocando, uma África que, apesar de todas as violências que sofreu, foi capaz de nos oferecer líderes exemplares como Mandela, um exemplo de diálogo e respeito pelo outro, e uma filosofia da humanidade como o ubuntu.

Estes encontros e comemorações podem ser a oportunidade para o reencontro urgente com África e a possibilidade de se descobrirem as combinações e os produtos necessários para produzir a poção de que precisamos. Um processo de descoberta que terá necessariamente de passar pelo reavivar das teias e cumplicidades que ao nível mundial existiram e existem no interior do universo da língua portuguesa e pela organização de uma …

Nova Viagem de Circum-Navegação

…que parta dum lugar simbólico onde esta língua, a nossa língua tomou forma, siga os muitos percursos possíveis, vá embarcando passageiros dos diferentes países e diásporas que pensam e comunicam em português, e chegue ao espaço que simboliza o encontro dos contrários, a síntese de um tempo novo.

A partida é, na nossa perspetiva, do Couto Misto, um microestado independente de facto encravado entre Espanha e Portugal, com existência entre o século X e 1868 com organização própria, que não estava ligada nem à Coroa de Portugal e nem à da Espanha, e, o destino, a Ilha de Moçambique, onde, como escreveu Miguel Torga, encontrou brancos, pretos, pardos e amarelos num convívio fraterno, os vivos a mourejar ombro a ombro, os mortos a repousar lado a lado.

Mas dessa viagem, a viagem da e à nossa língua, falaremos num outro momento.

POR

CARLOS FRAGATEIRO

Artigo publicado na Referencial 140, revista da Associação 25 de Abril, em Maio de 2021

Acreditarmos que Portugal, tal como há 500 anos, pode reassumir um papel estratégico na Europa e no Mundo, já não como potência e império, mas como plataforma para a emergência de uma outra cultura: a cultura do conhecimento e da sensibilidade
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