Entrevista com Isabel dos Santos
Entrevista com Isabel dos Santos
A Cultura é muito mais do que Falar uma Língua
A atriz Isabel Pereira dos Santos vive em Montreal, no Canadá. Licenciou-se em Teatro em 1980 na Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional de Lisboa, sob a direção de Augusto Boal. Iniciou a sua carreira artística em Portugal, tendo participado em cerca de 40 peças, muitas delas no Teatro Laboratório de Faro, companhia de que foi cofundadora. Aí representou, por exemplo, O auto da India de Gil Vicente e A Boda dos pequenos burgueses de Bertold Brecht.
Bolseira da Secretaria de Estado da Cultura, rumou a Montreal. Aqui vai fazer um mestrado em teatro na UQAM em 1992. A sua integração fez-se através da participação nas peças Il n’y a plus rien (Nouveau théâtre expérimental), La espera (Carré théâtre) e Cinquante, (Nouveau théâtre expérimental).
Participou enquanto atriz em inúmeras peças de teatro, de que destacamos The Poster, Infinity Théatre, Si les oiseaux no Théâtre Prospero e La foirée montréalaise no teatro La Licorne.
No cinema, participou em alguns filmes, de que destacamos Piché, entre ciel et terre de Sylvain Archambault. Será uma das protagonistas do filme Maria, de Alain Provonost que vai estrear no próximo mês de Agosto.
Na televisão, por seu turno, tem participado em várias séries televisivas, nomeadamente em Providence, na Radio Canada. É autora de várias peças de teatro, entre as quais El-rei D. Sebastião, Más Caras e Máscaras e Caminhos encobertos, Marezinhos descobertos. Gosta igualmente de contar contos. Recentemente publicou o livro/CD La soupe au caillou frais, du jour editado pela editora juvenil Planète rebelle. Apesar de viver longe de Portugal, a Isabel continua a gostar de criar pontes ligando seus dois mundos: muito recentemente encenou em Faro, com a ACTA, companhia de teatro, a peça do autor canadiano Michael Mackenzie Instruções para abolir o Natal.
A Isabel Pereira dos Santos é uma mulher do seu tempo, que gosta de se envolver no meio que a circunda.
Vamos conhecê-la um pouco melhor através desta entrevista conduzida por Joaquim Eusébio.
JE – As questões da integração do artista vindo do exterior na sociedade de acolhimento têm-te preocupado e a prova disso prende-se com a tua atividade na União dos Artistas.
IS – Eu creio que a nossa geração caiu no caldeirão da poção mágica de Abril e isso dá-nos a possibilidade de nos pretendermos envolver continuamente em projetos de implicação social e política. A partir da minha experiência aqui, dos obstáculos encontrados, desenvolvi uma reflexão sobre o modo de os ultrapassar. Foi pensando na ideia de dar voz à diversidade que decidi participar nas eleições autárquicas em Montreal integrando a equipa de Helen Fotopulos para a vereação do bairro do Plateau-Mont-Royal. É isso que me dá prazer no meu trabalho em Culture Montreal que é uma grande plataforma que reúne os principais organismos e grupos e agentes de desenvolvimento artístico e cultural em Montreal. Foi isso que me levou à União dos Artistas. Infelizmente a pandemia apareceu no momento em que estávamos a trabalhar sobre o problema das pronúncias estrangeiras, sobre as dificuldades de integração que encontram os artistas de origem não quebequense. A União dos Artistas é o sindicato que representa todos os artistas que trabalham em francês no Canadá. Trata-se dum grande sindicato que infelizmente não tem correspondência tanto em representatividade como em força em Portugal.
JE – Gostaria agora que me falasses das dificuldades de adaptação de uma jovem artista a um novo país.
IS – Eu não pensava que ia ser tão difícil. Era muito idealista e respirava algum otimismo. Ainda não tinha percebido que havia no Quebeque muitos obstáculos que se ofereciam aos artistas que vinham de fora.
JE – Como explicas a existência de algum chauvinismo, ou pelo menos, de uma grande proteção aos artistas quebequenses, quando a sociedade é tão diversificada composta por pessoas oriundas de todas as partes do Mundo?
IS – É difícil de compreender, mesmo para quem está aqui a viver. É uma situação bem mais complexa do que a da minha história pessoal… É preciso ter em conta que eu cheguei num momento em que a situação política estava em plena ebulição1. Assisti a um referendo que negou a possibilidade ao Quebeque de se tornar um país independente. Era o projeto de muitos quebequenses que não se revêm na língua e na cultura do Canadá anglófono. Do meu ponto de vista, depois do segundo referendo, houve um recuo do meio artístico quebequense relativamente à integração do outro porque se sentia a necessidade de proteger e de afirmar o imaginário coletivo que é um imaginário de um Quebeque onde o outro não existe. É sintomático que nos textos teatrais dessa época não exista o outro. Por outro lado, a francofonia quebequense oferece uma maior resistência às variantes de pronúncia do Francês do que a anglofonia relativamente às variantes de pronúncia do Inglês. A francofonia reage assim porque se sente ameaçada o que a leva a tomar uma atitude defensiva. Ora tudo isto acaba por ter consequências no ato de criação e de produção artística. Claro que isso me trouxe dificuldades adicionais no início, mas permitiu-me, por outro lado, trabalhar com a Comunidade Portuguesa. Ajudei a criar um grupo de teatro para adultos com pessoas da Comunidade e fiquei mesmo surpreendida com a quantidade de pessoas que quiseram participar no processo. A partir das improvisações, criei a peça Bonjour Montreal, bom dia. A peça integrou-se depois no calendário das comemorações oficiais dos 350 anos da fundação da cidade de Montreal. Formou-se também um grupo com crianças que falavam entre elas em Francês ou em Inglês, mas que começavam logo a falar em Português quando os pais chegavam… Eu achava aquilo de uma grande riqueza como matéria teatral e que deu origem a outra peça.
JE – Entretanto vais começar a trabalhar no meio artístico quebequense…
IS – Assim foi, de facto. Mas importa dizer que, se por um lado as coisas não foram fáceis, por outro, encontrei nos primeiros tempos da minha integração vários cúmplices, o Robert Gravel e o Jean-Pierre Ronfard, então diretores do NTE. Por outro lado, no Théâtre d’Aujourd’hui, dirigido por Michele Rossignol, passei a colaborar com o núcleo de novas dramaturgias integrando o júri da seleção de textos oriundos dos diferentes horizontes culturais. Como tinha muito pouco trabalho no Teatro nesses anos, o que me salvou foi a televisão, fazendo inúmeros papéis e permitindo-me avançar no meio. Por outro lado, o conto teve igualmente importância quando havia menos trabalho. Fui escrevendo contos e fui apresentando-os no percurso pelas bibliotecas. Quando não se tem trabalho, inventa-se… Sobretudo permitiu-me continuar a escrever. A linguagem do conto, sendo uma linguagem que está «colada» à pele do narrador, deu-me uma voz e estabeleceu a ponte entre a escrita e a cena…
JE – A escrita, a interpretação, a encenação. Qual destes chapéus te realiza mais?
IS – A escrita que fui sempre cultivando. Foi o sonho que sempre acalentei. O jogo teatral é o meu terreno de bem-estar e de alegria depois de resolvidas todas as questões e dúvidas que se me põem. A escrita, porém, é um terreno que envolve um maior sofrimento. A minha escrita é teatral e parte sempre do encontro com o outro. Não é a escrita que me realiza mais… Eu sou atriz e adoro a cena, a câmara. O que eu sinto é que se a emigração para mim teve consequências sobre o destino que eu gostava de me ter desenhado, a partir da minha sensibilidade e capacidades, então foi a escrita que não explorei como teria desejado. É diferente estar aqui e escrever aqui ou estar a fazê-lo em Portugal.
JE – Recentemente lançaste um conto La soupe au caillou frais, du jour que creio ser baseado num conto tradicional português, mas que vai muito para além disso. Naturalmente, o facto de ser escrito em francês me suscita a seguinte questão: até que ponto o facto de escreveres numa língua que não é a tua língua materna isso pode permitir ou limitar os horizontes na tua criatividade?
IS – Eu escrevi La soupe au caillou frai, du jour a partir duma necessidade que eu sentia aqui de falar às pessoas daqui e em francês pois é essa a língua que eu normalmente com elas utilizo. Portanto nesta versão não falo da estreiteza de espírito do camponês face aquele que vem de fora, não falo da esperteza do estrangeiro, que é uma esperteza pouco recomendável e que é tónica comum nas versões tradicionais deste conto. O que me levou a criar esta versão para aqui foi a possibilidade de utilizar o conto para falar da possibilidade de desconfiança que se pode ter do outro, do estrangeiro, aquele que se não conhece e como a aceitação do outro nos pode levar a criar algo que sozinhos não criaríamos. A sopa de pedra com o calhau fresco do dia é uma sopa que foi inventada pelos aldeões também porque receberam um estrangeiro, o que para mim é uma metáfora do que acontece aqui todos os dias neste país e nesta cidade de Montreal, que é uma cidade de imigrantes. A metáfora pode-se aplicar igualmente ao nível dos costumes, ao nível dos saberes, ao nível da cultura. É a partir da integração do outro, com o saber e o saber fazer do outro que nós conseguimos criar uma comunidade mais rica. Por outro lado, a sopa é uma apropriação de algo que o outro traz, neste caso um calhau, mas ao qual cada um de nós junta um ingrediente para que se faça uma sopa única. Assim, como os legumes são locais, a sopa é local, não é exótica. Assim, este conto permitiu-me abordar a questão da apropriação, do trabalho permanente de apropriação que existe na arte. Neste momento esta questão torna-se cada vez mais importante não só no meio artístico de Montreal, mas igualmente norte-americano e mesmo europeu.
JE – La soupe traduz o desafio que é posto a quem entra numa nova sociedade onde há novas formas de pensar e novas formas de ver o mundo e onde há necessidade de conjugar as formas que se trazem com novas formas, para se fazerem novas sopas …
IS – Exatamente. E por outro lado é também o meu lado pessoal. É a metáfora da Isabel, que tem de arranjar um calhau qualquer para se juntar ao caldo e criar uma sopa com os outros, mas tendo em conta que os outros trazem muitas outras coisas para a sopa. Ao fim e ao cabo é uma tomada de posição sobre o caminho da integração e de todas as dificuldades que lhe estão subjacentes. Quantas vezes pensei, o que poderei fazer aqui, com a minha pronúncia estrangeira, tendo outras características culturais, como poderei ser aceite aqui? Para mim era evidente que eu não queria viver num grupo aparte, mas queria viver, integrar-me e trabalhar no grupo da maioria.
JE – Se compreendo bem, as barreiras põem-se mais ao nível da cultura do que da língua, não é verdade?
IS – Com certeza. E por isso eu creio que o facto de cada um trazer a sua achega cultural para a grande sopa só nos enriquece a todos …
JE – No que pode ser a grande festa da cultura neste ‘’melting pot’’ em vivemos…
IS – Mas voltando à tua questão sobre o problema da escrever em francês… Como sabes, eu venho do teatro e a minha escrita tem a marca dessa arte que só existe no encontro com os outros. E portanto, estando aqui, é para mim, perfeitamente normal e natural que escreva em Francês, pois é nessa língua que eu normalmente comunico com as pessoas que me rodeiam e é nessa língua que eu trabalho. Dessa forma, a emigração dá-me ainda mais a possibilidade de ser capaz de perceber o ponto de vista do outro. Sendo minoritária, mas evoluindo num meio que é maioritariamente francófono. Acabamos por inevitavelmente conhecer outros horizontes o que alarga inexoravelmente a nossa visão global. Há sociedades em que a tolerância existe mas em que falta o diálogo com a maioria para que se possa criar algo de novo coletivamente. Aí as comunidades imigrantes são toleradas em grupos fechados. Os resultados aí são sempre muito maus. Aqui no Quebeque existe uma natural tensão entre as minorias e a maioria, mas há, felizmente, um diálogo que se estabelece e que poderá ser bem mais produtivo a longo prazo.
JE – E como surgiu a ideia de sair de Portugal?
IS – Eu nunca quis sair de Portugal. Isso nunca esteve nos meus projetos de vida. Aconteceu, por volta de 1989, quando o Teatro Laboratório de Faro perdeu o subsídio regular que recebia. Por outro lado, estava num período da minha vida de grandes ruturas e interrogações. Tudo isso me fez pedir uma bolsa de estudos à Secretaria de Estado da Cultura para fazer um mestrado em Teatro. Surgiu a hipótese da Universidade de Quebeque em Montreal no Canadá. O meu projeto era de fazer um mestrado de criação que iria durar um ano ou um ano e meio, para depois o concluir já em Portugal. Eu já tinha nessa altura a minha filha Tatiana e era impensável trazê-la para o Canadá. A perspetiva era sempre de um regresso rápido a Portugal. E nesse período conturbado da minha vida, muitas interrogações se puseram. Mas como Deus escreve direito por linhas tortas e o coração age mais rápido que a cabeça, acabei por me instalar em Montreal onde comecei uma vida nova.
JE – Sei que aqui chegaste com uma carreira artística já em progresso. De resto, parte da tua formação é feita em Portugal, não é verdade?
IS – Assim foi de facto, embora, e talvez te vá surpreender, eu fiz ainda previamente uma passagem por Direito. Porém esse curso desiludiu-me. Para mim, filha da pequena burguesia, o Teatro nem sequer existia. Em 1973 um amigo levou-me a ver um espetáculo da Comuna. Achei aquilo maravilhoso, diria mesmo mágico, mas tudo muito longe de mim. Na sequência do 25 de abril, comecei a viver intensamente o crescente movimento partidário que irrompia por toda a parte e a profusão de ideologias de esquerda que nos rodeavam intensamente. A partir do meu 3º ano começou a ser claro para mim que o Direito não era a minha via. Então uma colega que frequentava o Conservatório Nacional em piano veio passar uns dias de férias comigo em Cabanas de Tavira. E disse-lhe que pensava deixar Direito e que no regresso a Lisboa iria bater às portas dos Teatros a ver se alguém me queria. Ela aconselhou-me a Escola de Teatro do Conservatório. Assim fiz. Passei os exames de admissão com boas avaliações exceto em Canto. Aí começa uma nova fase da minha vida. Era mesmo aquele o caminho. Quando terminei a minha licenciatura em Teatro rumei para Faro. Vivia-se um momento de grande vontade de fazer coisas fora de Lisboa, da descentralização e da democratização cultural. Foi então que, com o meu companheiro da altura, o Luís Aguilar, e com outros colegas do Conservatório, a Ângela Pinto e o José Ananias, fundámos o Teatro Laboratório de Faro, com uma visão nova de ver o Teatro. Era uma companhia muito inovadora, verdadeiramente vanguardista, com um reportório muito variado. Estava instalada nas traseiras da Escola do Magistério Primário que era uma antiga casa senhorial. Para lá de representar, eu dedicava-me à escrita. No Conservatório, sob a orientação de Augusto Boal e de Carlos Porto, comecei a escrever pequenas peças. Já em Faro, escrevi várias que o Teatro Laboratório levou à cena, como por exemplo El-Rei Dom Sebastião. Para a Infância escrevi entre outras, Caminhos Encobertos Marezinhos Descobertos em colaboração com a Amélia Muge e Más caras e máscaras que depois foi adaptado para a televisão.
JE – Voltemos então a Montreal e à tua reconhecida implicação social e comunitária. Podes-nos descrever as tuas funções na política municipal de Montreal durante o teu mandato entre 2005 e 2009?
IS – Montreal é uma cidade muito descentralizada. Os diferentes bairros ou distritos, se se quiser, têm equipas que têm uma certa autonomia em relação à Câmara central. Funciona tudo como uma cidade federada. Por exemplo, no domínio cultural, há ações completamente autónomas no distrito e outras feitas em ligação com a Câmara central. Eu fui eleita como vereadora local do Plateau-Mont-Royal, que é uma zona de Montreal com 100 mil habitantes e que abarca realidades completamente diferentes no seu interior. É o bairro onde, na América do Norte, existe a maior concentração de artistas e criadores. É também o bairro histórico da comunidade portuguesa. É o bairro onde viveu Leonard Cohen, Mordecai Richler, Michel Tremblay…
JE – O que é que mais gostaste e mais detestaste na tua vida política?
IS – O facto de poder ajudar as pessoas, por vezes em coisas muito simples do quotidiano, muito concretas, por exemplo o tratamento de pequenas ruelas para que as crianças aí possam brincar ou o redesenhar os pequenos jardins do bairro. É o facilitar a vida das pessoas. O que menos gostei foi a agressividade e a desconfiança de alguns cidadãos relativamente aos eleitos. Se por um lado há um trabalho muito intenso, muito árduo, que a maioria das pessoas não imagina, mas por outro lado não podemos ignorar as razões profundas que estão por detrás do desencanto dos cidadãos face à democracia, designadamente os fenómenos de corrupção e a manipulação da comunicação.
JE – É conhecida a ligação entre o Plateau Mont-Royal e a Comunidade Portuguesa. Tu não estavas em representação da nossa comunidade, mas ela revia-se em ti. Poderíamos aqui falar de muitas outras coisas, mas creio que há uma que não podemos esquecer: os bancos portugueses.
IS – É uma das coisas que mais me orgulha. A Câmara de Montreal tinha como projeto refazer a avenida Saint-Laurent, uma das mais importantes artérias da cidade, nomeadamente do ponto de vista histórico. Era a rua da emigração que liga o porto ao norte da ilha. Os emigrantes foram-se aí instalando e os portugueses não escaparam a essa tradição. Os pioneiros instalaram-se nos anos 50 e 60 na zona hoje designada como o Bairro Português. As obras visavam remodelar todas as infraestruturas. Por outro lado, a Comunidade sonhava em criar uma assinatura que demonstrasse a presença portuguesa na rua e no bairro. Promovemos então a criação de um grupo consultivo de pessoas de origem portuguesa e em conjunto tentámos chegar a uma ideia de projeto identificador. Esse grupo englobava professores, artistas, ex-políticos, empresários, enfim pessoas dos mais diferentes horizontes. E surgiu a ideia dos bancos. Depois ocorreu a ideia de escrever frases significativas da História da Literatura Portuguesa nesses 12 bancos, ligando a Idade Média aos nossos dias, de D. Dinis a José Saramago. Pensou-se igualmente que essas frases escolhidas deveriam ser em Português e traduzidas em Francês por consagrados poetas quebequenses. E decidiu-se finalmente que o suporte material dessas frases e a decoração dos bancos deveria ser em azulejaria, elemento emblemático da nossa Arte Visual e feita por reconhecidos artistas plásticos de origem portuguesa (Joseph Branco, Carlos Calado, Joe Lima e Miguel Rebelo). O projeto ficou conhecido como os bancos de pedras e de palavras (bancs de pierre… et de paroles) e foi instalado numa área da avenida que está no coração do chamado Bairro Português. Foi assim que a Literatura Portuguesa acabou por tomar um lugar importante no coração duma avenida central de Montreal.
JE – Como vês o futuro desta Comunidade? É uma Comunidade ameaçada de extinção, pois que cada vez se estuda menos o Português? Ou é uma Comunidade com um futuro promissor, onde as novas gerações se vão afirmando, com uma escolaridade cada vez maior e ocupando postos significativos nas estruturas económicas, políticas e culturais? Consideras que há um risco de perca da identidade cultural?
IS – Trata-se de um assunto que tem muito para dizer… Levanta tantas questões… A visão que Portugal tem das comunidades, a relação que estabelece com elas nomeadamente através dos consulados e que devia ser revista e atualizada. Ela reflete muitos valores que pertencem ao passado e que fecham as comunidades e os seus grupos num universo onde, para além de uma certa cultura popular de massas, há pouco espaço para projetos inovadores e contemporâneos, em diálogo com as correntes artísticas e culturais do Portugal de hoje.
No entanto, eu penso que se têm havido oportunidades perdidas, há, no entanto, tanto coisa por fazer e tantas oportunidades que se abrem. Vê, por exemplo, a oportunidade que se abre com o turismo, a descoberta tanto da gastronomia como dos nossos escritores. Eu creio que se pode descobrir e mesmo estudar a cultura portuguesa sem que necessariamente se estude a nossa língua. E não estou com isto a pôr em causa, bem pelo contrário, a importância da defesa e da preservação da língua portuguesa. Por outro lado, é um facto que há menos pessoas na comunidade que falam a nossa língua. É preciso ver que as segundas gerações aderiram a outras formas de vida. Mas é fundamental que a cultura irradie. As situações estão inevitavelmente a mudar e não pudemos vê-las com uma visão passadista. A cultura é muito mais do que falar uma língua. As cumplicidades que se podem estabelecer com a cultura portuguesa podem ser feitas ultrapassando o conhecimento da língua. Em suma, seria fundamental que Portugal repensasse as suas políticas de intervenção junto das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo.
1 O Quebeque é uma das dez províncias do governo federal do Canadá e é a única em que a língua oficial é o francês. A distinção linguística e cultural fizeram com que o governo provincial dirigido pelo Partido Quebequense tivesse promovido dois referendos sobre a soberania em 1980 e 1995. Embora nenhum dos dois tenha passado, o referendo de 1995 teve a maior participação eleitoral na história do Quebeque, mais de 93%, e só falhou por menos de 1% dos votos.
POR
JOAQUIM EUSÉBIO