Miguel Hurst: O Português também é nosso
O encontro com o Miguel Hurst aconteceu no momento em que andávamos à procura da razão para a existência duma dinâmica do cinema angolano, com filmes a receberem prémios internacionais, Ar Condicionado e Para Lá Dos Meus Passos, dois filmes da produtora angolana Geração 80, outro a passar na Netflix, e de uma pergunta que há muito nos persegue: não poderia ou deveria haver uma estratégia dos países e das comunidades de língua portuguesa espalhadas pelo mundo para potenciarem as dinâmicas culturais e artísticas que acontecem nos diferentes países? Uma estratégia não só para o cinema, mas também para as outras artes, e mesmo para a cultura e o conhecimento, que atravessassem e dessem força a este universo único da língua.
Como alguém que está entre mundos, Angola, Portugal, Guiné, Alemanha, e que foi, durante 6 anos, Director Geral do Instituto de Cinema de Angola, sentimos que Miguel Hurst poderia ajudar-nos a responder aos desafios com que esta língua, e o seu universo, se está a confrontar neste tempo de pandemia e de mudança.
Miguel Hurst nasceu na Alemanha, em Freiburg im Breisgau, no ano de 1967, e cresceu bem mais a norte, pois nesse ano a família saíu da Floresta Negra e foi para Greifswald, uma cidade pequena, pesqueira, onde a Alemanha encontra o mar.
LP – Desses anos o que mais o marcou?
MH – O que mais me marcou e vincou foi a morte do marido da minha tia Ana, Amílcar Cabral. Estava a voltar da escola, num sábado, quando ao chegar ao nosso quarto, sou o mais novo de 4 (quatro), encontrei-o todo desarrumado, a minha prima Ndira, que na altura tinha 4 (quatro anos), deliciava-se com os nossos brinquedos. Mal sabia ela que o pai tinha sido assassinado, a mãe espancada pelos assassinos do marido, e a minha avó Alice, mãe da minha mãe e da tia Ana, estava desfeita e traumatizada pelo acontecimento.
LP – Como foi crescer com essa memória tão forte?
MH – Os ideais independentistas, defendidos pelos meus pais, rodearam o meu crescimento e, quem sabe, talvez o meu pensamento actual. Em nossa casa entravam sempre muitas visitas, estudantes vindos das colónias portuguesas em África e a ideia comum entre todos eles era uma só: Independência!!!! Assim cresci, até 1976, entre a grande vontade de estudantes que queriam a soberania e a autodeterminação dos seus países, já há séculos ocupados pelo colono. Uns estudavam, outros aprendiam técnicas de guerrilha, e, quase todos, fizeram filhos que viram os seus pais lutarem por ideais hoje frustrados, apesar de os países serem (in)dependentes.
LP – E voltou a África quando?
MH – Em 1976 pisei o solo africano pela primeira vez em Bissau, a capital da Guiné portuguesa.
Aí a cor do meu lenço, que como pioneiro na República Democrática da Alemanha era azul, mudou para amarelo, aí ainda assisti ao último concerto do músico guineense José Carlos Schwarz, aí aprendi de vez esta língua que até hoje veste os meus pensamentos e sonhos de uma cor única, aí tornei-me português antes de chegar à Portugal, o que aconteceu 3 (três) anos depois, em 1979.
LP – E como foi em Portugal?
MH – Em Portugal o meu interesse em ser um ser que comunica, o meu interesse em falar do continente dos meus pais e dos meus continentes, a vontade de contar histórias vindas da minha curta trajectória, a necessidade de falar da relação dos países que me abraçaram, fez-me entrar na Escola Superior de Teatro de Lisboa, fez-me criar o Grupo de Teatro Pau-Preto, fez-me vir para Angola, em 2003, e fez-me entrar no mundo do cinema da África lusófona.
LP – Os 24 (quatro) anos da passagem por Portugal deixaram alguma marca?
MH – Eu sou daqueles que brada aos 4 ventos… “GOSTARIA DE TER UM PASSAPORTE LISBOETA”. Foram 24 anos na minha vida. Cheguei a esta cidade em 1979. O mês de julho estava no seu esplendor quando, em direção a Miraflores onde vivi 3 anos, passei pelo estádio da Luz. O meu Benfica, pensei… O meu clube, senti… Uma das minhas paixões decidi.
TENHO QUE FAZER PARTE DESTE CLUBE. Apesar de ter umas chuteiras bastante robustas, Adidas, nunca tive muito jeito para o Futebol. Mas o atletismo levou-me para este estádio onde treinei… Não me lembro bem do ano… Os 100, os 200 e os 400 metros em velocidade. Tudo começou no estádio do Restelo de onde transitei para o da Luz.
Estes meus primeiros anos em Lisboa marcaram-me definitivamente. Não foi pelo esplendor da catedral do futebol da 2ª Circular, mas sim pela escola em que andei. Fui aluno da EAL… Escola Alemã de Lisboa.
Aí, bem cedo, fui convencido a entrar na banda Jazz deste colégio. Era vocalista da mesma. Parece-me que a apetência pelo palco surgiu nestes anos. Conheci O Charlie Parker, os Wheather Report, etc… tive o prazer de fazer parte de uma banda Rock escolar “The Vicious” de onde saltei para uma outra… “Os Refundidos”. Nesta última, já formada, fui o segundo vocalista, pois o primeiro, e principal letrista, era o Manuel Wiborg. Muito me marcou esta passagem pelos Refundidos e teve uma influência absoluta de decidir o caminho do Teatro. Este aconteceu, enquanto preso no SMO (SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO). O meu número de ordem era o 642/88, o mecanográfico 135300/88.
Muitas vezes fugia, após a formatura do almoço, para ir ensaiar com a Águeda Senna a peça Que Vergonha Dona Berta. Ensaiávamos algures na Cruz Quebrada e a estreia foi nos Bombeiros Voluntários de Barcarena…
Este foi o meu ponto de viragem. Depois de ter vontade de seguir Bio-Quimica, decidi escolher um outo caminho, o Conservatório. No dia em que caiu o muro de Berlim, em 89, saí da tropa e programei para poder ingressar na Escola Superior de Teatro e Cinema. Aconteceu! Fiz parte de uma turma bombástica… Manuel Wiborg, Sofia de Portugal, Cristina Bizarro, Miguel Borges, Maria Ruef… enfim foram gentes, foram ideias ali adquiridas que mudaram de vez o meu propósito de vida.
Fiz a minha primeira Novela, “Banqueira do Povo”, recusei um trabalho na Cornucópia, por isso na altura chamaram-me de louco, pisei o palco do Teatro da Trindade, a plateia (construção) que mais abraça o actor, trabalhei no TEC-Teatro Experimental de Cascais, com o Novo Grupo, um (1) ano no Teatro D.Maria II e… percebi que não era isto que eu queria. Três (3) anos depois fundei o Grupo de Teatro Pau Preto… “Museu do Pau Preto”, “Cabral”, “Alimária”, “Quem… mostrá-bô es caminhe longi”, peças que este meu grupo de teatro produziu… indicara-me o caminho para o Sul. Depois de abrir as portas do elitismo teatral ao público negro de Portugal, depois de falar e mostrar o que me preocupava, depois de 33 anos na Europa (9 na Alemanha + 24 em Portugal), decidi que precisava de outros desafios. Decidi, após o convite do André Mingas, vir para Angola e assumir a direção do IACAM- Instituto Angolano de Cinema, Audiovisual e Multimédia. O que eu tive que fazer na Europa estava feito. A minha, nossa História, estava inscrita nos cânones do Teatro português.
Se a minha passagem por Portugal deixou marcas em mim? Parece-me que sim!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Casei, fiz 2 filhos, estudei, me formei, me decidi a ser o que hoje sou… Só me falta o passaporte lisboeta!
LP – Como foi a chegada a Angola e a entrada no mundo do cinema?
MH – Cheguei às 18:00 do dia 03 de maio de 2003. No ano anterior estive aqui, Luanda, a participar no filme “Herói” de Zezé Gamboa. Depois das filmagens decidi que Angola seria o meu próximo destino. 10 meses depois aqui estava.
Era um sábado, na segunda, muito inseguro e nervoso, assumi o cargo de Director Geral do Instituto de Cinema. O convite foi feito pelo falecido André Mingas. Nesse dia também iniciei os ensaios da peça “Woza Albert”, onde encenei o Orlando Sérgio e o Raúl do Rosário vestido pelo cenário do meu amigo, mestre, António Ole.
Como director do Instituto de Cinema, Audiovisual e Multimédia (2003-2009) fiz parte integrante da primeira e única Lei do Cinema de Angola, conheci o país, exibindo cinema angolano num projecto que apelidei de “Cinema na Cidade”, onde me inspirei para a produção do meu primeiro livro, “Angola Cinemas-Uma ficção da Liberdade”, consegui participar na “First African Film Summit” – 2005 em Johnnesburg, fui a Cannes, ao Festival de Cinema em Shanghai, fui a Mumbai-Bollywood, aprendi, vi, decidi, legislei e “temprei” o caminho do sector cinematográfico de Angola.
Em 2008 fundei o FICLuanda (Festival Internacional de Cinema de Luanda). Foi neste ano, no FICLuanda 2008, que conheci o Mário Bastos (Fradique), ele, tinha chegado a Luanda no final do seu curso de Cinema feito nos EUA. No Festival atribuímos-lhe o prémio honorário pelo seu filme “Kiari”, e, nesse ano, homenageamos a falecida Sara Maldoror e resgatamos o seu filme “Sambizanga”.
No IACAM, passei 6 (seis) anos a lutar, dentro de uma máquina enferrujada, chamada de Ministério da Cultura e em 2009, janeiro, depois de ter idealizado e produzido o FICLuanda, fui exonerado, ainda hoje penso que foi por razões de falta de comunicação, do cargo de Director do IACAM, e voltei a ser dono das minhas decisões e opções.
Foram esses caminhos que me ensinaram um pouco sobre a história do Cinema Angolano, do Cinema da Guiné e de Moçambique.
LP – E o que é importante reter dessa história?
MH – Este cinema, que logo pós a independência florescia sob estratégias revolucionárias, sob ideais concretos de crescimento, sustentabilidade, divulgação e produção consistente e concreta, marcava assim o seu lugar em vários festivais internacionais. Foram os anos em que as estratégias dos estados africanos, que português falavam, conseguiram montar lógicas de produção que contribuíram para uma linguagem que me atrevo a apelidar de “A primeira Geração do Cinema da África Lusófona”. Havia estratégias concretas, havia vontade absoluta de construir estruturas duma indústria cinematográfica para a África Lusófona. Tal não aconteceu, assistimos à produção de alguns filmes que até conseguiram vingar em Festivais internacionais e que timidamente conseguiram “sublinhar” uma geração que, até 2004, mostrou um cinema falado em português.
LP – E hoje?
MH – Hoje, depois de sair da letargia que assolou o cinema Angolano nas últimas décadas, assistimos ao nascimento de um novo fôlego. Produções vindas do Lubango “Filmes sem Futuro” pela mão do Nuno Barreto, produções feitas em Luanda pela “Geração 80”. Vemos os nossos filmes a entrar nas grandes plataformas de distribuição audiovisual. “Santana” que, depois do filme moçambicano “Resgate”, foi o segundo filme PALOP a entrar na NETFILX, “Rastos de Sangue” de Mawete Paciência que ocupa o seu lugar no Amazon Prime.
Apesar da falta de uma estratégia de estado, apesar da ausência de uma política cultural sustentável, apesar da extinção do Instituto de Cinema de Angola, apesar da falta de interesse descarado que o Estado angolano demonstra pelos sectores da cultura, vemos florescer produtoras que levam as parcas produções a patamares dos prémios internacionais. “Ar-Condicionado”, “Para lá dos meus Passos”, filmes angolanos, “Comboio de Sal e Açucar” de Moçambique, os atrevimentos de Welket Bungué, marcam estes anos 20 do séc. XXI no que diz respeito à produção de filmes falados na língua de Camões.
Penso que está na hora! Acredito que a expressão artística dos PALOP, está a viver um momento único! Kilunji Kiahenda, Edson Chagas, Nástio Mosquito, Binelde Hyrcan, entre outros, levam e elevam as produções artísticas angolanas a um estatuto de respeito pela comunidade artística internacional.
Penso que está na hora! Os estados PALOP, devem aproveitar programas como o PROCULTURA para reunir os seus esforços e aproveitar a língua portuguesa como o vector comum de uma estética própria. As artes cénicas, as plásticas, a música, a literatura feita nesta comunidade que em português se expressa está a assistir a um momento único na sua história.
Apesar de ainda depender de financiamentos da UE, apesar de ver crescer uma ideia, que eu considero paternalista, inscrita em teorias neo-colonialistas, deve esta comunidade servir-se destes instrumentos para o alavancamento de uma estética, uma ética cultural, uma união linguística, uma linguagem cultural falada em português. Ainda não aconteceu, ainda não houve acordos para esta luta que deve ser conjunta. Porém acredito que, ainda no meu tempo, irei assistir a uma estratégia conjunta de projectos elaborados e produzidos no mundo que fala português.
“O português, também é nosso”!!! Agostinho Neto.
LP – E o Miguel…
MH – Não foi fácil vingar nesta sociedade que por defeito, raramente demonstra o seu real eu, que muito pouco mostra a sua paixão, que constantemente se esconde atrás de uma ilusão chamada angolanidade. Por ora, sinto que ainda ficarei mais uns anos por estas paragens. Ainda me falta ter mais um grito, mais uma discussão. Preciso de fazer mais um livro, preciso de ter um “arrancarabos”, com uma ideologia, com uma moral, com um ensinamento, com uma imposição… Preciso de falar sobre o Cristianismo em África, em Angola. As suas influências, os seus feitos… Malfeitos. Preciso de confrontar-me com a tradição, esta sim, muito portuguesa, enraizada no “Modus Vivendi” dos Reinos da Matamba, do Ndongo, do Congo do Bailundo, Kwanhama, do Tchokwe… Preciso de fazer mais um livro… A CRUZ… Depois disso logo irei decidir em que águas me banhar, porque tudo o que virá a seguir, será sempre perto do mar.
LP – Mas como pessoa irrequieta que é, com o gosto de participar em ideias novas com gente interessante, irreverente e inovadora, não acreditamos que esteja sem nenhum projeto a germinar.
MH – Tem razão. Aceitei um convite que me foi feito no último mês de outubro, para participar na estruturação de um Festival de Cinema para críticos. KULTURACON.
LP – O que é que isto significa?
MH – Falando em estratégias culturais Sul-Sul, que ultrapassam as fronteiras dos países de língua portuguesa, queremos, a partir de Angola, lançar um festival que possa servir não só aos angolanos, mas ao mundo de cineastas espalhadas pelo sul do globo terrestre. Queremos formar uma plataforma que permita um acesso mais simples e facilitado aos cineastas destas zonas geográficas a acederem às grandes plataformas digitais “Online” internacionais e inscreverem os seus filmes nelas. Falamos de uma Netflix ou da Amazon-Prime.
O nosso objetivo é o de dar mais voz e maior visibilidade aos filmes produzidos abaixo da linha do mediterrâneo e assim ajudar a construir um todo no que diz respeito ao audiovisual.
KulturaCon é uma celebração das expressões criativas de mentes tropicais. Procuramos longas-metragens, documentários, curtas-metragens, filmes de moda e vídeos musicais de cineastas de ou vivendo em qualquer país do continente Africano, América do Sul e América Central, Caraíbas, Sul e Sudeste da Asia produzidos depois de janeiro de 2018: https://filmfreeway.com/KulturaCon
O festival está pensado para finais de fevereiro de 2021 e poderá ser visto pelo público em geral na plataforma TELLAS. Uma plataforma de filmes online angolana.