Flora Gomes – Eu me inspiro na cultura do meu país

Uma entrevista com Flora Gomes, por Jusciele Oliveira1

Jusciele Oliveira – Você poderia falar um pouco sobre sua experiência como cineasta com o seu público, com a crítica, com entrevistas, debates?

Flora Gomes – Eu gosto de trocar experiências criativas e pensar o meu trabalho. Agradeço a você pela coragem de refletir sobre ele, pois como eu já disse muitas vezes, fazer cinema em qualquer parte do mundo é uma aventura bastante difícil e na Guiné-Bissau, com todas as dificuldades, é 10 vezes mais duro e uma pessoa precisa ser mesmo doida, para sonhar que pode contar uma história, através de um filme. Eu tenho muita dificuldade de contar porque escolhi fazer cinema ou de minha experiência. Mas, quando comecei a fazer o filme Mortu nega sabia que queria render homenagem ao herói povo da Guiné-Bissau e de toda a África, Amílcar Cabral, que me escolheu, juntamente com mais três jovens (Sana Na N’Hada, Josefina Crato e José Bolama) para contar as nossas histórias, e tive muitas dificuldades em estar atrás de uma câmera, dando ordens e dirigindo atores. Só que eu sabia que era um filme muito importante, em que o herói, a personagem principal devia ser uma mulher. Muitos se perguntaram: “Por que não um homem?”. São os homens que carregam armas. Eu não sou muito das armas. E as mulheres, por vezes, é a parte que não são vistas. Eu sei que tive a sorte de colocar nessa mulher uma personagem forte. Bia Gomes, que era uma bailarina do Ballet Nacional da Guiné-Bissau, que compreendeu e percebeu o que é que eu queria. 

Nas primeiras gravações do Mortu nega, a Bia não havia ainda mostrado a sua grandeza como atriz. Estávamos ainda naquela “fase de namoro”, dos primeiros passos. Depois, percebemos que a Bia era muito mais do que eu imaginava, com seus olhares absorvia todas as luzes, inclusive as luzes dos projetores, e ao mesmo tempo iluminava o ambiente, e adaptava-se rapidamente ao que era solicitado. Cabe destacar também que tive dificuldades com a quantidade de gente, tantos jovens… Assim, gostaria nesse momento de render uma homenagem a Bia Gomes, que vive em Portugal, que é uma atriz extraordinária, que poderia atuar em qualquer lugar do mundo. Uma mulher africana que no Mortu nega, no meio da luta de independência, foi atrás do seu marido, companheiro, do seu amor, da sua paixão. Demonstrando o importante papel da mulher na luta pela independência da Guiné, na qual a mulher participou como comandante de frente de batalha, socorrista, enfermeira, professora, mulheres que carregavam material de um lado para o outro… Em síntese, foi isso que me levou a escolher a mulher como protagonista no filme Mortu nega. E eu encontrei na Bia essa força, esse querer interpretar e representar essa mulher de luta.

JO – E como você conseguiu transformar não-atores, atores amadores ou figurantes em atores premiados, como a Bia Gomes (Diminga-1989, Mortu nega) e Maysa Marta (Yonta-1993, Udju azul di Yonta), que ganharam o prêmio de melhor atriz no FESPACO – Festival Pan-africano de Cinema e Televisão de Ouagadougou?

Bia Gomes

FG – Como você sabe no meu país não há escola de teatro ou de atores e eu inventei de preparar os atores. Ensaiei muito os atores e uma boa parte dos atores com quem trabalhei no primeiro filme, no segundo filme e no terceiro, já começaram a aparecer atores. No Po di sangui, praticamente não eram atores, tirando o Ramiro Naka, que é músico, e a Bia Gomes, que vem do Balé, desde o Mortu nega, nunca tive nos filmes pessoas que já tinham feito um filme. A Bia já tinha feito Nhuturu (1987- Umban U’Kset), com o nosso compatriota, mas o trabalho realmente plástico, de posicionamento do ator em relação a câmera, que é uma das coisas que eu dedico muito tempo, porque para mim no cinema há muitas diferenças na forma de narrar ou de contar as histórias e isto está no posicionamento da câmera. A verdade é que os grandes cineastas são os que têm o domínio e a inteligência de colocar a câmera no local onde ninguém estava a espera. E assim realizar um grande filme.

 

Nos nossos ensaios, falamos sobre cinema, como cinema surgiu. Falamos de fotografia, pintura, música, literatura, dança… Criamos o habito de leitura. Quem tinha melhores habilidades para interpretar e ler ajudava os outros. E eu estava ali como facilitador. Eu não li nada para fazer isso. É minha intuição. Levava pessoas para falar da sua experiência. Levei o Abdulai Sila, Carlos Barros e Adriano Ferreira para falar das experiências deles como artistas. Assistíamos os filmes e depois conversávamos. Explicava a função de todos no cinema. Lemos textos de guineenses e africanos, como Odete Semedo, Abdulai Sila, Mia Couto, Filinto Barros, entre outros.

JO – Uma de suas marcas autorais é trabalhar com crianças. Nesse sentido, como é trabalhar com tanta criança?

FG – Isso é um desafio. Eu lembro da abertura dos Olhos azuis de Yonta as crianças brincando, depois resolvi colocar as datas importantes da história da Guiné-Bissau, nas câmaras de pneus. A cena é para mostrar na verdade a dinâmica do país, mas também a convulsão depois do engarrafamento, ao pé da minha casa na altura. Quando estou com crianças, sinto-me mais à vontade, porque elas acham que aquilo é uma brincadeira e eu aproveito o máximo a brincar com elas.

JO – As ideias originais dos seus filmes são muito específicas e por vezes complexas. Como você se inspirou? O que te inspira?

FG – Isso tem muito a ver com minhas ideias da esperança no futuro. Esta é minha inspiração. Nos meus filmes, no Mortu nega, acaba com a chuva, a esperança, a juventude. Nos Olhos azuis de Yonta, o filme acaba com os miúdos e ficamos num plano em que a mãe e o pai dançam. Isso tem uma outra leitura. As coisas não estão ainda bem claras. Estão a marcar passo. No Po di sangui, a criança pinta-nos o futuro. Em Nha fala, o filme acaba quando Cabral olha para o horizonte. É como se ele dissesse: deixa-me eu estar de cima para eu olhar para vocês que estão aí, a batalhar. Na Republica dos meninos, é o mundo que eu sonhei, do mosaico em que não há cores, nem diferenças entre tamanhos dos homens. Na verdade, eu me inspiro na cultura do meu país.

JO – O Crioulo seria um exemplo dessa inspiração?

FG – O Crioulo é o meu orgulho, a minha pertença. Foi forjado numa luta ímpar para a afirmação de uma nação em construção. O Crioulo é a nossa bandeira! O crioulo é somatório dos, que como eu, não falam somente a língua dos que vieram de longe.

JO – Nesse sentido, você faz cinema nacional?

Não sei o que é. Eu faço cinema, ponto-final. As pessoas é que o pintam. As pessoas é que dão o visto de africano, internacional, visto do Flora, porque sou africano, mas penso como homem. Isso é bom porque as pessoas vão dando os vistos que elas acham (risos).

JO – E como é o seu visto?

É meu olhar sobre a Guiné-Bissau, a África, o mundo… Sempre com alegria e a esperança, mas sem deixar de pensar no passado e nos pesadelos da sociedade.

JO – Você pensa em como os Outros veem seus filmes?

FG – Eu tive a sorte de ter uma escrita. O problema é felizmente que nós que viemos de uma escrita cinematográfica completamente diferente dos nossos patrões de cinema. Estou a me referir a Ousmane Sembène, Paulin Vieyra, Souleymane Sissé, Djibril Diop Manbéty; todos esses grandes cineastas africanos, com os poucos meios de que dispunham, tentaram e fizeram alguma coisa, filmes. No entanto, é compreensível também ninguém gosta que descreva a sua desgraça. Os meus filmes têm sempre um cunho político e isso incomoda. É uma luta. Vão acabar por aceitar que nós existimos e produzimos. Estamos num avião que não tem que escolher os passageiros com quem tu vais viajar. Temos que apertar os cintos nessa viagem e já é tarde para os eurocêntricos. Eles têm que mudar de percepção e notar a grandeza, a quantidade e a qualidade das imagens que vem do mundo, da África, que eles construíram nas suas mentes.

JO – E o que Flora Gomes está fazendo? Quais os planos para o futuro?

FG – Desde 2015, eu estou a trabalhar em um documentário sobre a vida do homem que me fez hoje o que sou, que é o Amílcar Cabral. O documentário é na perspectiva de ouvir as pessoas, sobre como era Cabral, para registrar a memória coletiva dos que marcharam com Cabral. Neste momento, estou na fase de transcrição e montagem. E sempre buscando financiamento para fazer um novo filme.

1 Doutora em Comunicação, Cultura e Artes (2018), com a tese sobre as marcas autorais de Flora Gomes.

 

Biografia

Flora Gomes nasceu no dia 31 de dezembro de 19492, em Cadique, na antiga Guiné Portuguesa, sob o jugo colonial português, e estudou cinema em Cuba, no Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica – ICAIC (1967-1972), sob os ensinamentos de Santiago Álvarez Román; e em Dakar, na Televisão Senegalesa (1972-1973), sob orientação de um dos mestres dos cinemas africanos, Paulin Soumanou Vieyra. Em 1973, Flora Gomes, juntamente com vários diretores africanos (Ousmane Sembène e Med Hondo) e da América Latina (Fernando Birri e Santiago Álvarez), participa da reunião Third World filmmakers in Algiers, que foi um dos mais célebres encontros do Comitê de Cinema Popular, que se preocupava com as discussões sobre cinemas do “Terceiro Mundo”, notadamente contra o imperialismo e o (neo)colonialismo.

Fora, através do projeto educacional “Escola Piloto”, em Conacri (já independente), idealizado por Amílcar Cabral, que a criança Florentino Gomes concluíra o ensino secundário (1965-1967). Assim, a questão educacional e de letramento estará sempre nos filmes de Gomes, como uma possiblidade de mudança, o que, segundo o cineasta, foi inspirado por Amílcar Cabral e na ideia da “Educação de libertação” do brasileiro Paulo Freire (o qual foi homenageado no filme Mortu nega por meio da personagem do professor que fala do significado da palavra “luta”), sempre em busca de uma educação com consciência crítica, que liberte o sujeito, e, parafraseando Cabral, para que se possa pensar autonomamente e andar com os próprios pés.

Gomes trabalhou como repórter para o Ministério da Informação da Guiné-Bissau por três anos (1975-1977). Essa experiência deve tê-lo influenciado em sua produção cinematográfica, principalmente ao que está relacionado com o fator histórico e a luta de independência da Guiné-Bissau, conforme observa-se em títulos como Mortu Nega e no documentário As duas faces da guerra (2007) – o qual assina em coautoria com a realizadora portuguesa Diana Andringa. Este documentário narra histórias da luta de independência da Guiné contra o colonialismo português (1963-1974) e o confronto dos portugueses contra o regime ditatorial (1926-1974) vivido em Portugal. Em Bissau, em 1979, Flora Gomes participou de cursos com o cineasta francês Chris Marker e com a montadora Anita Fernandez, com a qual trabalhou posteriormente na montagem de som do filme Udju azul di Yonta e no cenário de Po di sangui.

Flora Gomes iniciou a sua carreira cinematográfica ao lado de Sana Na N’Hada co-realizando com este dois curtas-metragens: O regresso de Cabral (1976) e Anos no oça luta (1976); dirigiu ainda o média-metragem A reconstrução (1977), ao lado do italiano Sérgio Pina; em 1994, realizou o curta-metragem A máscara. Seus cinco longas-metragens de ficção são: Mortu nega (Morte negada, 1988), Udju azul di Yonta (Olhos azuis de Yonta, 1992), Po di sangui (Pau/Árvore de sangue, 1996), Nha fala (Minha fala, 2002) e Republica di mininus (República de meninos, 2012). Em 2009, participou de uma construção coletiva, Afrique vue par… (África vista por…), realizada por dez cineastas africanos, produzida e apresentada no Festival Pan-Africano de Argel, na Argélia. Nessa obra coletiva, cada cineasta apresentou um filme de curta-metragem de ficção com 10 minutos de duração. Flora Gomes apresentou o curta-metragem intitulado A pegada de todos os tempos, uma metáfora poética na qual se refere à inocência infantil, à alegria de viver, que representa as cores brilhantes da África para fazer chover escassamente no continente.

Flora Gomes é reconhecido social e culturalmente como antigo combatente, já que usou outras formas de armas e de luta. Ele transformou em material fílmico a história e a cultura de seu país de nascimento, do seu continente e de todos que passaram e continuam passando pela sua vida. O próprio Gomes assume o papel de narrar a sua versão da história, apresentando a versão relatada pelos bissau-guineenses e africanos. De fato, um dos pontos fortes dos filmes de Flora Gomes é a habilidade de apropriar-se e (re)modelar-se à realidade bissau-guineense, africana e mundial, aos diversos paradigmas estéticos, dispositivos e gêneros do cinema, por vezes, adaptando-se à falta de recursos financeiros e técnicos para conseguir exercer o seu ofício de cineasta, como acontece na produção recente de um curta-metragem sobre os direitos humanos, Bindidur di passada (O vendedor de histórias, 2017), realizada com apoio do Instituto Camões, em Bissau.

A obra fílmica de Flora Gomes, mesmo sendo uma curta filmografia, é ousada, recusa-se a ser estática e se reinventa a cada lançamento, apresentando novas temáticas e gêneros, histórias originais que remetem à sua própria cultura, suas escolhas estéticas e procedimentos que lhes são característicos: iluminação típica, preferência por personagens femininas, predileção por narrativas fragmentadas, cortes bruscos, planos longos e close ups. As marcas autorais do roteirista, cenógrafo, encenador, ator e realizador africano Flora Gomes associam estilo com a profundidade temática do universo do diretor (temas recorrentes, visão de mundo) e também vincula-se à forma (enquadramentos, movimentos de câmera, iluminação, montagem, cenário, preparação de atores.), contudo, sem um desligamento estabelecido entre as partes, uma vez que a significação e a riqueza temática são inseparáveis da mise en scène nos filmes de Flora Gomes, que parece, nos seus filmes, refletir sobre a natureza do cinema enquanto área “transartística”, transdisciplinar e transcultural que, ao lado de outras artes (fotografia, arquitetura, música, teatro, dança) e disciplinas (antropologia, história, sociologia, educação, psicanálise), pode se revelar mais produtiva.

2 Em conversa recente, Flora Gomes disse que nasceu em 01 de janeiro 1950 e que: “Eu gosto das histórias de incertezas… Nasceu entre 31 de dezembro de 1949 e 01 janeiro de 1950”.
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