Carolina de Jesus, uma Mulher de Luta

Carolina de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Filha de pai e mãe negros e humildes, foi estimulada pelo seu avô a estudar, pois para ele a alfabetização era o principal meio de saída da miséria. Tendo seus estudos financiados por uma fazendeira, patroa de sua mãe, Carolina de Jesus estudou até o segundo ano primário. Esses dois anos foram suficientes para que ela desenvolvesse o gosto pela literatura e um forte talento para a escrita.

Carolina de Jesus foi a primeira pessoa de sua família a saber ler e escrever. Desde pequena, foi rejeitada e alvo de chacota por ser considerada “diferente”: uma menina negra e pobre que sentia prazer na leitura. A escritora conta essa e outras memórias de sua infância e juventude em sua obra “Diário de Bitita”. 

Quando jovem, Carolina de Jesus foi presa em sua cidade acusada de feitiçaria porque supostamente estaria lendo na porta de casa um livro de São Cipriano. Esse racismo perverso permeia toda sua obra: ora, uma jovem negra lendo, só podia ser uma bruxa! Na prisão, sofreu humilhações e violências. O livro que Carolina de Jesus estava lendo na ocasião de sua prisão era, na verdade, um dicionário. 

Com a morte de sua mãe em 1937, decidiu deixar a cidade natal, peregrinando em busca de trabalho e da cura de uma doença nas pernas, até chegar em São Paulo. Passou algum tempo vivendo nas ruas, até que a Prefeitura recolheu a população de rua e literalmente despejou essas pessoas no Canindé, uma das primeiras favelas da cidade. Nesse local, já grávida, Carolina de Jesus construiu sozinha o seu barraco com madeira, pedras e outros materiais que ia encontrando, e passou a trabalhar como catadora de papel.

Para Carolina de Jesus, o Canindé era o quarto de despejo de São Paulo: enquanto os outros bairros e o Centro representavam outras partes de uma casa, como a sala de estar, por exemplo, a favela seria aquele quartinho onde ficavam as figuras indesejáveis. Em seu primeiro livro, Quarto de despejo — Diário de uma favelada, temas como o cotidiano de fome, a miséria, a problemática do álcool, as condições de vida sem higiene, a violência, os abusos e preconceitos sofridos por ela, seus filhos e outros moradores da favela foram relatados. 

A escrita foi a forma que Carolina de Jesus encontrou para resistir às dificuldades e ganhar forças, se alimentando da escrita. Determinada e geniosa, ela possuía, desde cedo, o projeto de se tornar escritora. Mesmo depois de um dia de muito trabalho e com todas as adversidades, ela colocava seus três filhos para dormir, acendia uma vela e escrevia.

Com o intuito de se tornar escritora, Carolina de Jesus percorreu muitos editores, rádios e jornais com seus escritos em mãos, chegando a publicar partes de um livro de poemas em alguns jornais. Ela também apresentava seus manuscritos a toda personalidade que visitava o Canindé, como políticos, jornalistas e figuras públicas. 

No final da década de 1950, Carolina de Jesus apresentou seus escritos ao jornalista Audálio Dantas, que foi ao Canindé objetivando fazer uma reportagem. O jornalista se encantou pela obra Quarto de Despejo, escrevendo duas matérias sobre a escritora, que foram publicadas em 1958 nos jornais A Noite e O Cruzeiro, e também auxiliando Carolina a condensar todos os seus escritos para a publicação de seu primeiro livro em 1960.

A obra se tornou uma verdadeira revolução editorial, batendo todos os recordes de lançamento já vistos até aquela data no Brasil: tornou-se best seller rapidamente, teve a sua primeira edição esgotada, foi traduzida em dezesseis idiomas e vendido em mais de 80 países. De acordo com Tom Farias, biógrafo da escritora, a obra vendeu 10 mil cópias na primeira semana e cerca de 300 mil nos anos seguintes. A obra, contudo, sofreu preconceito da crítica e de literatos, em função da linguagem que utilizava, pois não seguia a forma culta da língua. Mas, mesmo assim, dentro de sua dura realidade, Carolina de Jesus conseguiu desenvolver uma linguagem poética e uma narrativa poderosa de análise sociológica, antropológica e política.

Com o sucesso de sua primeira obra, devido ao tema inusitado, exotismo e à narrativa diferenciada, Carolina de Jesus se torna uma verdadeira celebridade, requisitada por todas as classes sociais, sobretudo as poderosas, aparecendo nos jornais e na televisão. Frequentou casas de famílias importantes, como os Suplicy, e foi convidada de honra do presidente do Uruguai. A partir daí, ocorre a necessidade de sair da favela devido a ameaças de alguns moradores, que julgavam que ela havia contado suas histórias sem permissão. Segundo Tom Farias, no dia de sua saída, ela  foi ao mesmo tempo vaiada, aplaudida e apedrejada. 

Carolina de Jesus então se muda para um sobrado em Santana, onde passa a ter contato com a sociedade de elite, que não a aceitava, nem a seus filhos.  Decide denunciar, assim, essa hipocrisia social da elite em seu próximo livro Casa de Alvenaria. Carolina de Jesus não era aceita na favela por ser uma intelectual e não era aceita num bairro de classe média, por ser originária da favela.

O novo livro impacta a sociedade de classe média, que é denunciada por Carolina de forma crítica e revelando preconceitos, o que aprofunda ainda mais os conflitos com a vizinhança e o preconceito em relação aos filhos. Assim, deixa o bairro de Santana e se muda para um sítio em Parelheiros, interior de São Paulo, onde passa a viver isolada e falida. 

Desenvolve um conflito com os editores, devido às ácidas denúncias à sociedade em meio a uma ditadura militar e também ao preconceito linguístico advindo dos literatos. Afastada do público e da imprensa, morre em 1977 aos 62 anos de idade, no ostracismo e desiludida, não conseguindo retornar à literatura e magoada com o meio editorial e com pessoas que a enganaram e que não permitiram que ela apresentasse as suas qualidades como romancista e contista. 

Apresentar a vida e obra de Carolina de Jesus em diversos meios artísticos é essencial, pois seus escritos são atemporais. Não somente por representar um momento no qual o crescimento urbano desenfreado provocou o inchaço das periferias e o agravamento das questões sociais, bem como toda uma instabilidade política no país.  A obra de Carolina vai mais além: ela é um símbolo atual de luta na questão da moradia e do empoderamento da mulher, sobretudo a mulher negra. 

Muito da obra de Carolina de Jesus ainda está por ser descoberta: ela publicou diários, poesias, músicas (gravou um disco com as suas músicas) e deixou peças de teatro, romances. Pode-se dizer que Carolina abriu um caminho para as escritoras negras, e hoje ela assume um papel de pensadora e líder intelectual para uma camada que está repensando direitos, o lugar da mulher e o lugar de fala da mulher negra. Em suas próprias palavras: “eu não posso ser apagada”. Urge, portanto, a criação de filmes, peças, exposições e outros objetos artísticos e educacionais que a promovam, por ela se constituir uma das personalidades mais inspiradoras da história do Brasil.

Documentário produzido pelo projeto Mulheres do Luta

Receber informações

Deixe-nos o seu e-mail para receber avisos sobre a publicação de novos artigos ou outras informações.