Literatura de Cordel: A Tradição das Cantigas ao Desafio

Não existe fronteira definida entre literatura erudita e literatura popular, entre as quadras e sextilhas do poeta académico e as do cantador de rua. O popular não recorrerá a metáforas nem a hipérboles, usará apenas o vocabulário do linguajar quotidiano e comum, mas não há regras nem cânones que definam limites, separando uma da outra. A diferença entre as duas é mais evidente no modo de difusão de cada uma: a oralidade é a expressão mais adequada ao verso popular e o livro pertence à literatura erudita. A oralidade popular é o alicerce rústico da arte, a poesia erudita a obra-prima do fingidor. Porém, desde os primórdios da tipografia que as narrativas populares mais em voga se imprimiam em folhetos, mais exatamente desde 1482, com a História da Princesa Magalona. As edições destinadas ao povo tiveram também uma maneira diferente de serem divulgadas: penduradas em cordéis, esticados entre dois caibros ou ramos de árvore e daí a expressão antiga e hoje consagrada de Literatura de Cordel.

No desenvolvimento matricial desta arte da palavra, o verso popular na península Ibérica eclodiu a partir de diversas práticas de comunicação, algumas delas destinadas a divulgar os feitos guerreiros dos protagonistas das guerras peninsulares entre cristãos e muçulmanos. Outras narravam amores e desamores do quotidiano, amizades e desencontros, cantigas de amigo e de maldizer. Descante é palavra que ainda hoje se usa em várias regiões de Portugal e que evoca uma das origens remotas das Cantigas ao Desafio. Desde os tempos medievais e até muito recentemente, o canto litúrgico nas igrejas era em versos e estrofes em latim e o povo memorizava o ritmo e a rima de palavras de uma língua morta que não tinham qualquer sentido fora dos cerimoniais dos templos. Só três exemplos:

  1. Desde o século XII que se canta nos funerais em coréus (sílaba tónica seguida de sílaba átona) de rima AAA, uma composição em versos de sete sílabas que apenas aparenta ser simples. Como outras composições litúrgicas, estas poesias são de uma exímia construção, na técnica e no conteúdo.

Dies irae, dies illa A

Solvet saeclum in favilla A

Teste David cum Sibilla! A

Quantus tremor est futurus,

Quanto ludex est venturus,

Cuncta stricte discussurus.

  1. Nos momentos mais solenes de adoração do Santíssimo Sacramento, canta-se a sextilha de sete sílabas de ritmo popular escrita por São Tomás de Aquino (1225-1274), sempre com uma sílaba tónica seguida de sílaba átona e com rima ABABAB.

Tantum ergo sacramentum A

Veneremus cernui B

Et antiquum documentum A

Novo cedat ritui B

Praestet fides supplementum A

Sensuum defectui B

  1. No cerimonial religioso da Sexta-feira santa, canta-se um hino atribuído a um franciscano do século XIII (e também ao papa Inocêncio III), divulgado em cantochão (gregoriano), hino que também foi musicado por muitos dos grandes compositores de música polifónica. Nos inimitáveis versos de sete sílabas e estrofes em AAB.

Stabat mater dolorosa A

Juxta crucem lacrimosa A

Dum pendebat filius B

Cujus animam gementem

Contristatam et dolentem

Pertransivit gladius.

Terminadas as cerimónias religiosas, os artistas populares da palavra desensacavam violas e rabecas e disputavam-se nos adros entoando cantos profanos e brejeiros na língua vernácula que todos enxergavam, contando histórias de reis e princesas, proezas de cavaleiros andantes, tecendo críticas satíricas, inventando romances, louvações e cantigas de maldizer, obedecendo ao ritmo e às rimas do canto litúrgico: o Descante. Cantava-se na igreja, “descantava-se” no adro. O papa Bonifácio VIII (1294-1303) ameaçou excomungar todos os que praticassem este divertimento profano nos adros das igrejas, sem sucesso. Na Divina Comédia, por essa e por outras, o poeta Dante Alighieri (1265-1321), que se apaixonava pelos descantes populares e deles soube aproveitar métricas e rimas, colocou-o no inferno. Os aedos nem sempre respeitavam a sequência de sílabas tónicas e átonas dos poetas eruditos, nem sempre se compadeciam com o rigor dos ritmos, porque não dispunham de tempo para procurar as palavras: tudo se passava de repente, num desafio sem tréguas, para proporcionar aos devotos, sobrecarregados de pecados e de penitências, um momento de libertinagem e de felicidade.

Os números e os ritmos

A magia dos números sempre fascinou os humanos, depois da invenção dos algarismos por um muçulmano em Bagdade, novidade divulgada no ocidente cristão pelo papa Silvestre II, um monge beneditino francês que aprendera a nova tabuada nas escolas islâmicas de Córdova e de Toledo. O número quatro representa a fronteira das quantidades que a memória humana mais comum consegue reter sem ajudas de ordem emotiva, sem recurso às operações matemáticas de dividir e de somar e sem o apoio de técnicas de memorização. Com treino, qualquer cérebro humano consegue reter maior quantidade de elementos, introduzindo entre eles marcas ou pontos de referência a cada conjunto de quatro ou menos unidades. O número sete suscita, desde os alvores das artes da memória, uma especial magia. Foram sete os dias da criação, sete são os pecados capitais, sete os sacramentos, sete as virtudes cardeais, sete as obras de misericórdia, as bem-aventuranças, os dias da semana e os de cada fase da lua, as cores do arco-íris, as moradas celestes (os sete céus), sete as maravilhas do mundo e as notas de música, as propriedades da matéria, as colinas de Roma, fecham-se as preciosidades a sete chaves e enterram-se os mortos em sete palmos de terra, tem botas de sete léguas, tem sete mares e os anões da Branca de Neve são sete… Sete são as artes liberais: aritmética, geometria, música e astronomia (quadrívio), gramática, lógica e retórica (trívio), que desde a remota antiguidade constituem o alicerce da filosofia.

Sete elementos ultrapassam a capacidade natural de qualquer cérebro os memorizar facilmente e, por isso, torna-se necessário recorrer a artifícios e a estratagemas. Como os números, as letras são abstrações, ferramentas virtuais com as quais identificamos e arrumamos as nossas perceções da realidade. Para excitar e desenvolver a memória, criou-se uma linguagem mais sofisticada do que o linguajar prosaico, submetendo as frases a um constrangimento rigoroso de números, de ritmos e de rimas. O modelo mais simples e eficiente foi o da sequência de sete sílabas, obedecendo a um ritmo de três pancadas, uma pausa e três ecos, rimando pelo menos em duas dessas sequências e marcando as pausas nas sílabas átonas. Deu incontáveis estrofes como esta:

Ó meu rico São João A

A capela nova cheira B

Cheira a cravo, cheira a rosa C

Cheira a flor de laranjeira B (Popular)

A estrutura de cada verso desta quadra popular, cantada em todos os arraiais joaninos dos nossos dias, é exatamente a mesma de Dies irae, dies illa, de Tantum ergo sacramentum ou de Stabat mater dolorosa. Somente a estrofe popular canta-se nos adros e a erudita canta-se nas igrejas. Na rusga mais popular do arraial do São Paio da Torreira canta-se:

O são Paio da Torreira

C’uma grande bebedeira

Foi tomar banho ao mar.

Era tamanha a piela,

Que ao despir da farpela

Às calças chamava saia.

Provavelmente ninguém daquela rusga tem consciência de que, na origem desta cantoria popular, está um cântico religioso do século XIII, com o mesmo número de sílabas, (quase) o mesmo ritmo e o as mesmas rimas: AAB CCD.

Na língua portuguesa, a ferramenta mais tradicional e mediática da memória é a quadra de sete sílabas (redondilha maior). As variantes próximas mais sofisticadas desta ferramenta são as quadras em versos de cinco sílabas (redondilha menor) e a sextilha que comporta uma vasta variedade de rimas.

Decompondo a métrica de sete sílabas no ritmo de três pancadas uma pausa e três ecos, encontramos um outro número cheio de significados. Desde o tempo dos pitagóricos que o número três significa a perfeição e a unidade divina ou ainda as faculdades divinas. São três as divindades principais da teogonia grega, assim como no hinduísmo e na teologia egípcia. Também são três os ciclos da vida, assim como aqueles magos que vieram do Oriente; Jesus ressuscitou ao terceiro dia e o triângulo isósceles é uma das representações da divindade. Mais simples, prático e sedutor: são três os tempos do galope de um cavalo, com três pancadas, seguidas de uma pausa. O ritmo do galope do cavalo sempre foi, desde tempos imemoráveis, o modelo do movimento. O Martelo Agalopado é hoje em dia uma das variantes mais apreciadas entre os cordelistas e mais aplaudidas na cantoria nordestina: estrofes de oito ou dez versos undecassilábicos com tónicas nas sílabas 3, 6 e 10:

Quando olho flagelados retirantes

Nas cidades e nas brenhas do sertão

Humilhados mendigando como antes…

“cesta-básica” e “cheque cidadão”.

E o pobre pendurado na embirra

Mastigando barbatana de traíra

Bebe vinho, ri no circo, come pão

Vegetando na rotina da mentira.

(Raimundo Sta Helena, Secas e Saques, 2000)

O oitavão acima citado é uma das estrofes perfeitas em martelo agalopado de um folheto de Raimundo Santa Helena. O poeta cearense Patativa do Assaré conseguiu um ritmo perfeito e maravilhoso nas quadras undecassílábicas em português matuto, com tónicas nas sílabas 2, 5, 8 e 11:

Meu verso rasteiro, singelo e sem graça

Não entra na praça, no rico salão,

Meu verso só entra no campo e na roça

Nas pobre paíça, da serra ao sertão. (O Poeta da Roça)

Não vá procurá neste livro singelo

Os cantos mais belo da lira vaidosa,

Nem brio de estrela, nem moça encantada,

Nem ninho de fada, nem cheiro de rosa. (Ao leitô)

No entanto, estes últimos exemplos citados ultrapassam de longe o modelo da quadra ou o da sextilha heptassilábicas. São desenvolvimentos atuais e inovadores da cantoria nordestina.

Os últimos grandes cantadores populares de Portugal, descendentes dos bardos e menestréis medievais, desapareceram na década de ’40 do século passado, entre muitos deles o António Aleixo de Loulé e o Marques Sardinha de Avanca. Deixaram poucos discípulos, alguns emigraram e levaram a arte do verso popular para os países de acolhimento. Uns regressaram, outros não. Um discípulo do Sardinha, José Joaquim Monteiro, do Bunheiro – Murtosa, andou por terras do Brasil e viveu cinquenta anos em Macau. Deixou uma obra volumosa, publicada recentemente. O mesmo aconteceu com dois discípulos algarvios do Aleixo, o Manuel Pardal e o Clementino Baeta. Mas nas escolas e nas universidades portuguesas, o tema da Literatura de Cordel nem sequer consta de qualquer programa atual

Desde meados do século XIX que a arte do verso popular conheceu no Nordeste do Brasil, a partir do estado da Paraíba, um extraordinário desenvolvimento: primeiro com a edição local de folhetos com temas da tradição oral europeia e depois com a edição de temas próprios do Nordeste, histórias de vaqueiros, de bois e boiadas, de secas e desgraças, guerras, cangaço, devoções religiosas, histórias da política e da polícia, dramas pessoais… Quando em Portugal a arte desaparecia das ruas e dos arraiais, ela arrancava no Brasil para uma fantástica difusão, como entretenimento e educação de gerações de cidadãos. Os poetas populares brasileiros, cordelistas, repentistas e cantadores, merecem hoje o apreço dos letrados e eruditos e são acarinhados e aplaudidos por multidões nos arraiais populares. Eles são os descendentes de uma fantástica aventura da palavra e da memória.

Uma expressão cultural milenária

O verso popular tem, na península Ibérica, raízes muito profundas, anteriores à formação da nacionalidade e à própria língua portuguesa. Eram famosas as escravas cantadeiras e repentistas que animavam os serões dos emires e dos califas de Córdova; os nobres cristãos e os vizires que se disputavam território em razias no tempo da reconquista, sempre levavam nas suas expedições poetas e jograis para contarem ao povo, cantando em verso, os seus triunfos e conquistas. A mais antiga poesia conhecida na Europa medieval é a das canções de gesta dos bardos populares. Já no século XIII encontramos nos textos de um geógrafo e poeta hispano-hebraico, Al-Harizi, uma extraordinária homenagem aos poetas ibéricos:

Não esqueças que a poesia mais sublime,

Ornamentada de pérolas,

Que nem todo o ouro de Ofir pode recompensar,

Nasceu na Hispânia

E espalhou-se até aos confins da terra.

Porque os poemas dos filhos da Hispânia são vigorosos e suaves,

Como se fossem esculpidos numa chama de fogo.

E comparados com estes poetas viris,

Os poetas do resto do mundo parecem efeminados e frágeis.

A Literatura de Cordel, expressão pela qual é conhecida a arte do verso popular, é de origem ibérica, uma arte da oralidade espontânea. Desapareceu de Portugal, mas continua vigorosa e em expansão, sendo hoje tipicamente brasileira e nordestina. Os últimos cantadores populares que se disputavam em descantes e desafios desapareceram das festas e romarias portuguesas no final dos anos ’40 do século XX. Nomes como o António Aleixo de Loulé, o Calafate de Setúbal, o Cavador de Anadia, o Marques Sardinha de Avanca… permaneceram na memória dos mais saudosos por longos anos. Alguns deles tiveram sorte: alguém se interessou pela arte e passou a papel a oralidade, publicando os textos; outros ficaram só na memória frágil do povo.

O último poeta popular português é José Joaquim Monteiro (1913-1988), cujo roteiro de vida é a de um emigrante que passa por três continentes, Europa, América e Ásia (Murtosa e Madeira, Belém do Pará, Macau). Inspirado desde criança pelos desafios do seu (quase) conterrâneo Marques Sardinha, viveu alguns anos no bairro popular de Nazaré, no meio do maior núcleo de repentistas do Norte do Brasil, em Belém do Pará e regressou a Portugal ganhando a todos os demais concorrentes os descantes de rua. Como muitos dos cantadores ao desafio do seu tempo, era até então analfabeto, pobre e desamparado, um artista de rua. Aprendeu a ler e escrever na tropa e foi em Macau, onde viveu durante meio século como soldado corneteiro e contínuo num liceu, que aperfeiçoou e exibiu a arte de versejar, contando a história da sua vida e a da cidade que o acolheu e onde constituiu família, em verso popular. A sua obra editada conta mais de 1.500 páginas. O Instituto Internacional de Macau publicou em 2010 uma edição de grande formato em 2 volumes (mais de 800 páginas), intitulada Meio Século em Macau e em 2013 a obra Memórias do Romanceiro de Macau. Recentemente (dezembro de 2020) reeditou uma das obras publicadas em 1983, intitulada Macau Vista por Dentro.

J.J. Monteiro é um daqueles portugueses que fizeram do mundo inteiro o terreiro das leivas dos seus arados, cultivou uma arte de versejar que o seduziu no tempo lúdico da sua infância e serviu-se desse instrumento para partilhar uma história de vida, a dos seus conterrâneos e a da comunidade que o acolheu. Seria coisa banal se esta arte não se inserisse na longa história da identidade dos povos de língua portuguesa desde tempos imemoriais. Apesar de não ter em Macau o ambiente de disputa e de incentivos como os que vigoram no Brasil, desenvolveu os seus recursos e a sua inspiração como um génio solitário. Graças a ele a Literatura de Cordel ganha dimensão intercontinental, no momento em que decorre na UNESCO o processo de reconhecimento da Literatura de Cordel como património imaterial da humanidade.

A poesia erudita é a parte mais visível e apreciada das literaturas; de Camões a Fernando Pessoa, não faltam pelo país memoriais, estátuas, nomes de ruas e de praças que evocam os grandes nomes do nosso desempenho cultural. O poeta erudito é um fingidor, dizia Fernando Pessoa e até Camões, com o seu cantando espalharei por toda a parte, pretendia imitar os poetas populares que, esses sim, cantavam mesmo. O fingidor de Pessoa era um trolha sofisticado, aquele que executava, com a colher de fingir, as decorações das fachadas da Arte Nova que imitavam a escultura e tanto seduziam o poeta do desassossego. O verso popular é o alicerce da poesia erudita e de toda a demais literatura. Como todo alicerce é tosco e rústico, essencialmente oral ou para ser apregoado nos arraiais, sem fingimento, cantado para melhor ser memorizado. A poesia erudita é palavra de fato e gravata, vestida de grife, decorada com sofisticadas figuras de linguagem, metáforas e hipérboles; o verso popular tem a pureza de uma fonte, a beleza da nudez, o fascínio de um carnaval, é sensual e sedutor, tem gosto de embriaguez e sabor a pecado. Companheira dos caminhantes, amante dos peregrinos, refúgio dos desassossegados, é memória e âncora do tempo à deriva.

Não existe em lugar nenhum em Portugal um MEMORIAL para lembrar o verso popular (Literatura de Cordel). O Brasil já prestou homenagem em numerosa estatuária e avultada onomástica à arte mais apreciada de todo o Nordeste e Norte daquele país. Portugal, que é a matriz desta forma cultural, para além de uma estátua do poeta António Aleixo em Loulé, de um painel em azulejo na estação ferroviária de Avanca, nada possui de vistoso como verdadeira homenagem a uma das marcas mais originais da identidade nacional. Uma estátua e um espaço no Parque dos Poetas à Literatura de Cordel na figura do último dos poetas populares J. J. Monteiro, seria uma digna e justa maneira de recordar aos forasteiros um dos valores fundamentais da nossa criatividade cultural. A obra escrita de J.J. Monteiro já foi apresentada e divulgada em alguns dos espaços mais emblemáticos desta manifestação cultural no Brasil: na Universidade Federal do Pará, na Academia Pernambucana de Letras, na Academia Brasileira de Letras, nos Gabinetes Portugueses de Leitura de várias cidades brasileiras, etc. Vários artigos científicos e libretos de divulgação tiveram como tema a obra do poeta. A Wikipedia já referencia a pessoa e a obra. O Instituto Internacional de Macau apresentou oficialmente a obra no palácio da Independência e no município da Murtosa, terra da juventude do poeta.

A neurociência e o verso popular

Defendem os estudiosos da neurodidática (Rui Costa, neurocientista da fundação Champalimaud) que os neurónios do cérebro humano trabalham em conjunto criando ritmos que correspondem a sistemas, tanto mais complexos quanto o treino ao qual são submetidos. Cientistas ingleses estudaram recentemente os fenómenos da aprendizagem da música por crianças e adolescentes considerados “superdotados” e estendem agora as suas investigações a outros domínios do conhecimento. A neurodidática é uma ciência nova, mas desde os finais do século XIX que os neurologistas descobriram as capacidades do cérebro humano na armazenagem e no tratamento da informação e nas particularidades diferenciadas do poder de inovação que alguns cérebros alcançam através de um treino intensivo, como acontece com qualquer atleta no desporto. Ninguém imagina pelo momento qual seja a quantidade de neurónios de um cérebro humano, apenas se tenta conhecer como alguns desses neurónios se relacionam entre si quando existe para tal uma motivação, que tanto pode ser a da preservação da vida do próprio ser humano como a da sua criatividade material e cultural. O modo como os cultores do verso popular e os repentistas desenvolvem as suas capacidades sugere algumas pistas importantes para o estudo dos sistemas fisiológicos do cérebro. Já o padre António Vieira e os grandes pregadores sabiam que o ser humano era mais recetivo à mensagem quando excitado por solicitações externas, o que explicavam pela ação da graça divina que se servia para tal da palavra dos pregadores. Com o desenvolvimento da fisiologia cerebral a partir do final do século XIX, é-nos permitido hoje compreender o porquê de algumas funções do cérebro e da amplitude da sua criatividade.

Já em 1596, o jesuíta Matteo Ricci (1552-1610), italiano ao serviço do Padroado Português, chegado a Macau em 1582, servia de mediador entre a cultura latina ocidental e a civilização chinesa, traduzindo para chinês alguns textos importantes da tradição ocidental e dando a conhecer aos ocidentais os fundamentos da cultura chinesa. Nesse ano escrevia em língua chinesa o Método de Aprender de Cor, um tratado sobre a memória e um método para memorizar a tradição oral que foi divulgado em manuscrito em Nanquim e publicado em Cantão (Ganzhou) em impressão xilográfica em 1625: ele mesmo aprendeu de cor, como faziam os letrados e os administradores públicos do Império, milhares de páginas de história, poesia, direito, costumes e tradições, assim como crítica literária, servindo-se para esse efeito dos métodos utilizados no ocidente. O texto de Ricci mostrava aos funcionários chineses, fortemente hierarquizados pelo conhecimento e pela experiência, como se decoravam as mensagens e como se transmitiam fielmente numa outra cultura. O missionário e os seus colegas assumiram a qualidade e a posição social dos letrados e administradores da dinastia Ming, imitando-os no vestuário e nos hábitos quotidianos, para melhor os convencer de algumas virtudes dos bárbaros do sul. Já no século XVII eram conhecidos mais de trinta métodos de memorização, desde o mais tradicional Palácio da Memória até à associação de letras e sílabas (Nicoecalcoco, para decorar a sequência dos concílios ecuménicos da igreja católica), sendo o método da métrica, do ritmo e da rima aquele que mais sucesso teve no trabalho de Ricci. Foi graças à aplicação deste método na aprendizagem da língua e das tradições chinesas que os jesuítas conseguiram as autorizações dos governadores e a amizade dos mandarins e letrados que lhes facilitaram o acesso a Pequim onde, através dos eunucos e altos funcionários da corte, conseguiram fazer chegar ao imperador Wanli (14º da dinastia Ming) os presentes que o seduziram, para obter as permissões necessárias para a abertura de colégios e de missões na China. Graças à iniciativa e à perspicácia de Ricci e dos seus companheiros, a presença dos jesuítas na China traduziu-se numa história de sucesso.

A história da expansão portuguesa por três continentes marcou profundamente a identidade de um povo pequeno e periférico que assumiu, no tempo da dinastia de Avis, uma vocação apostólica de cruzada: a de cumprir um destino divino, prometido numa teofania ao primeiro rei na véspera de uma batalha impossível (Ourique, 1139). Antes de ser ideologia oficial do reino, posta no papel pelo homem mais erudito da corte de D. Manuel, Duarte Galvão, a Crónica de D. Afonso Henriques foi tema de poetas populares. A segunda Constituição Política da República Portuguesa, de 1933, tinha como pressuposto implícito a mesma motivação que levou Garcia de Resende, Damião de Góis, Camões e o padre António Vieira a construírem os modelos de identidade que marcaram até ao século XX as virtudes de um povo que se identificava sem constrangimento, até 1946, como Império Colonial Português. Foi nesse ano, o da independência da União Indiana, que o até então denominado Estado Português da Índia passou a chamar-se Província Ultramarina, denominação que já constava na Constituição Monárquica de 1822 e na Republicana de 1911 e que se estendeu, a partir da emenda constitucional de 1951, às restantes colónias e desde então todo o domínio português passou a ser apresentado como uma nação multirracial e pluricontinental, revogando definitivamente o Acto Colonial de 1930 que tinha sido incorporado na Constituição de 1933.

O tempo colonial é página virada na história da identidade dos países, hoje soberanos, que adotaram o idioma português como língua oficial; eles procuram hoje uma identidade supranacional através de uma língua comum. Ninguém sabe ao certo quantas criaturas neste vasto mundo, espalhadas por todos os continentes, falam português no trato quotidiano, mas o número de 230 milhões não deve estar muito longe da realidade. O verso popular, de raiz ibérica e que merece hoje um extraordinário acolhimento por terras do Brasil, não teve igual sucesso nos demais países de língua oficial portuguesa: não consta que nos demais países tenham surgido poetas populares, jograis dos números e das rimas. Nos tempos que correm (falando dos últimos cem anos), a arte quase desapareceu de Portugal a partir de meados do século passado, enquanto ganhava exuberância e prestígio no Brasil. Os últimos génios da oralidade que mereceram os aplausos do público português desapareceram em meados do século passado e aqueles que lhes sobreviveram e preservaram a arte inspirados nos últimos grandes mestres, merecendo as suas obras editadas, Monteiro, Baeta e Pardal, não conheceram o século XXI.

Dos três, certamente José Joaquim Monteiro foi aquele que mais compulsivamente relatou em verso as histórias de uma vida inteira. Nenhum deles teve o acalanto de um público entusiasmado nem o desafio de competidores cruéis, como acontece no Brasil, para exigir deles o aperfeiçoamento da arte dos números e da magia das rimas. Eles foram simplesmente bardos por iniciativa própria, entusiasmados desde crianças pelo sucesso de mestres com os quais se cruzaram por ironia do destino.

Os poetas académicos nunca viveram nem vivem hoje dos seus versos. No ambiente brasileiro, são muitas centenas os que vivem da arte da palavra em verso, deixando os príncipes da poesia a curtir ciúmes. Não pretendemos com estas observações avaliar a qualidade e o valor da arte pelas vendas do papel impresso, nem apreciar os textos pela qualidade do papel. Sugerimos a académicos, investigadores na área cultural, professores, formadores de opinião, que deitem um olhar indiscreto e crítico sobre estes trovadores desajeitados, jograis de poucas palavras que, sem jeito nem feitio caprichado, encantam o povo e conseguem seduzir multidões. Para lá de todas as formalidades políticas, das constituições de cada país e das instituições de caráter internacional, o cantar popular em verso faz parte da identidade lusófona. É a língua portuguesa, é a filosofia do povo no estado mais próximo da pureza. Os poetas populares são a memória viva de uma arte secular, eles são o testemunho do funcionamento da própria memória e nada mais têm a esconder a quem se obstinar a desafiá-los, senão responder como qualquer peregrino: – São rimas, senhor!

FESTCORDEL

O FESTCORDEL – Festival Internacional do Verso Popular foi criado em 2018, com o objetivo restaurar em Portugal uma das tradições culturais mais antigas e genuínas da língua portuguesa, juntando, numa exibição de arte da palavra, alguns dos maiores poetas e repentistas populares da atualidade, de Portugal, Espanha e Brasil. Pretendemos sensibilizar as escolas, as universidades e o público em geral, para esta tradição perdida, da qual tivemos exímios executantes de norte a sul do país, alguns dos quais, como o Marques Sardinha, retratado desde 1929 na estação ferroviária de Avanca, viveram entre nós e encantaram o nosso povo que ainda recorda os seus nomes. O verso popular é uma arte do povo, cultura genuína da nossa gente e de todos quantos partilham a língua portuguesa pelos continentes do planeta.

O FESTCORDEL de 2018 e de 2019 foram um extraordinário sucesso. O de 2020 não chegou a acontecer por conta da pandemia que a todos nos afeta; está em moratória para continuar no momento oportuno, assim como outros espetáculos da palavra, restaurando os antigos “mistérios” em cantoria popular, no respeito da mais pura e genuína tradição. As cantigas ao desafio conheceram em Portugal, nestes últimos anos, um renovado interesse e, graças ao contributo de repentistas brasileiros, um novo alento para o espetáculo da palavra.

António de Abreu Freire, nascido no Bunheiro (Murtosa, Aveiro) 77 anos, doutorado em física e em ciências humanas, professor universitário e investigador no Brasil, Canadá e Portugal, conferencista e navegador, tem um vasto currículo como escritor em várias línguas nas áreas das ciências humanas e da divulgação científica desde 1967. Publicou, entre outros títulos, La Révolution Désaliénante – Fondements de la pensée de Karl Marx (Montréal/Paris, 1973), Essai sur le Pluralisme (Montréal 1975) e mais recentemente (já neste século) Brasil 500 Anos – Diário de Bordo (Universitária, 2001), Sermões de Santo António do padre António Vieira (Portugália, 2009) Ação e Palavra – vida e obra do padre António Vieira (Afrontamento 2010), História de um Homem Corajoso (2ª edição Afrontamento, 2010), Crónicas em prosa de mar e verso de cordel (DebatEvolution 2010), Introdução à Literatura de Cordel (DebatEvolution 2012), O Roteiro de Martim Soares Moreno (DebatEvolution 2013). São numerosas as publicações de artigos em revistas científicas e, recentemente, participou na realização do Documentário de longa-metragem em cinema A Pedra e a Palavra (São Luís do Maranhão, 2013), sobre a vida e obra do padre António Vieira. Publicou pelas edições do IIM Momentos do Intercâmbio Comercial e Cultural com o Oriente (2013) e O Roteiro do Verso Popular (2014). Saiu a segunda edição do Diário de Bordo – pelas rotas de Vieira, publicado pela primeira vez em 2008 depois de uma viagem de um ano inteiro a bordo de um veleiro por todo o espaço da vida do padre António Vieira. Últimos livros publicados: Estratégia e Profecia, Inesp, Governo do Ceará, 2016. Os Jesuítas e a Difusão da Cultura Científica nos Séculos XVI e XVII, E-Book, FCT, 2016. Ensaios sobre Identidade e Cidadania, MIL, 2017, Padre António Vieira – Uma quase Biografia, pela Academia de Letras do Maranhão, 2020. Guionista da série televisiva em 10 episódios A Pedra e a Palavra, São Paulo, 2020.

António de Abreu Freire

abreufreire@gmail.com

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