Fábrica das Artes do Centro Cultural de Belém: Um Espaço de bons Encontros

Que força misteriosa é esta que faz com que todos andem inquietos, os físicos com os aceleradores de partículas e os poetas com os aceleradores da sensibilidade.

Manuel António Pina

Apesar da ideia mais aliciante ser, para mim, a da implosão de tudo o que mata a criatividade, nomeadamente as escolas, tenho consciência de como essa ideia pode acabar por ser contraproducente e provocar efeitos contrários aos desejados. Tenhamos em conta como as grandes tentativas de mudar o mundo que não respeitaram e romperam com a plasticidades dos sistemas acabaram por ter resultados contrários ao que propunham, como aconteceu com muitas das lutas por sociedades mais justas a darem origem não a uma maior igualdade, mas a uma nova classe dominante tão ou mais perversa que a anterior.

Em vez da implosão, parece-nos mais eficaz potenciarmos a plasticidade dos sistemas e apostarmos na abertura à mudança das pessoas que o integram, utilizando, como aliados estratégicos, os projetos que, dentro e fora da escola, já trabalham na perspetiva dum outro modelo de formação e têm todas as condições para contaminar o sistema e contribuir para a sua mudança.

Raizes da Curiosidade, Manuel Ruas Moreira

É no quadro desta estratégia que elegemos a Fábrica das Artes do Centro Cultural de Belém como o projeto que revela as opções mais significativas do que se faz em Portugal no quadro da relação entre as artes e a formação pois no seu projeto existem dimensões que, por um lado, retomam ideias e práticas que foram determinantes para a implantação e sobrevivência das artes no sistema educativo português ao longo dos mais de 40 anos do Portugal democrático, e, por outro, porque abre outras dimensões de intervenção que enunciam algum dos desafios com que as escolas se confrontam e a que o casamento entre as práticas artísticas e a formação tem, com urgência, de responder.

A Fábrica das Artes e a Liberdade de Experimentação

A Fábrica das Artes1 do Centro Cultural de Belém, assume-se como um espaço de pesquisa, criação e experimentação, no domínio da arte contemporânea, vocacionado para crianças e jovens. Um espaço de bons encontros, centrados na dimensão educativa da arte, entre os diferentes intervenientes no projeto, sejam os elementos da estrutura da Fábrica, sejam as crianças, os pais e os professores, sejam os criadores convidados, encontros capazes de provocar visões atentas e estimulantes do mundo.

Porque há uma consciência efetiva de que a realidade da escola não responde minimamente aos desafios com que as crianças e os jovens se devem confrontar, sejam os desafios de hoje ou do tempo dos pais destas crianças e jovens, o facto de a Fábrica ter capacidade de provocar visões atentas e estimulantes do mundo leva a que o seu projeto possa desafiar as escolas para a importância destas se afirmarem, tal como as instituições culturais, como redutos de defesa e incentivo da liberdade de criação, como espaços onde é possível fazer experiências e criar o novo ou o outro. Uma perspetiva onde a escola teria de se assumir como uma estrutura de projetos, como um sistema aberto, onde a arte e a ciência estariam no centro e o sentido dominante seria o da investigação e da curiosidade e não a necessidade de colocar tudo em caixinhas, no que acreditamos ser uma intervenção estratégica quando sabemos que um dos desafios maiores com que hoje a escola se confronta é conseguir libertar-se da estrutura disciplinar com que está manietada

As Dimensões do Questionamento e da Escuta

Nós vivíamos numa casa sempre cheia de gente e muito aberta. O conselho mais forte que os meus pais me deram foi: a nossa missão na vida é mantermo-nos entusiasmados. Então, quando estivermos aborrecidos e isso não for uma coisa pontual, temos de mudar de vida.

Madalena Wallenstein

Um projeto que olha para as crianças enquanto seres com ideias e opiniões próprias, uma preocupação que Madalena Wallenstein2, diretora da Fábrica, assume que a acompanha desde a sua própria infância, da vivência com a sua família, onde tinham um modo de estar muito crítico e muito aberto na discussão e onde as suas opiniões eram consideradas. Uma vivência que não encontrou quando entrou para a escola e percebeu que aí a escuta não existia e que as crianças eram encaradas muito mais como um projeto de futuro, como não tendo uma vivência própria.

Por isso os projetos e as práticas da Fábrica das Artes são permanentemente objetos de escuta, o que acontece:

– na observação do modo como nos espetáculos os espectadores interagem com os artistas, na forma como se criam dinâmicas no interior do próprio público, não só entre as crianças e os jovens, mas também com os adultos;

– na conversa que a seguir aos espetáculos decorre na sala;

– no debate com grupos organizados de crianças e jovens sobre os espetáculos no contexto da globalidade da programação;

– nas jornadas de reflexão e debate sobre a programação artística e a criação artística para a infância, a receção pelos públicos e as relações que se têm estabelecido entre infância e arte no âmbito das Instituições Culturais, que contam som a participação de artistas e outros convidados das áreas da crítica e da educação.

Um processo que é desenvolvido de forma a perceber como cada proposta ou projeto é capaz de por em causa conceitos estabelecidos como a infância, a criação artística, os espectadores e a educação, qual o seu o impacto junto do público e de que forma suscitam mais interrogações, tensões e polémicas.

Integrar os Saberes e Trabalhar sobre Temáticas de Hoje

As crianças vivem naturalmente no espanto de existir – eis por que são seres naturalmente filosóficos.

José Gil

É a consciência que o sentido de um projeto de e para crianças deve ser o da investigação e da curiosidade, e não o de colocar tudo em caixinhas, que tem levado a Fábrica nos últimos anos a estruturar a sua programação a partir de temáticas dos tempos de hoje e que obrigam a cruzar especialistas de diferentes saberes, no que consideramos ser uma das dimensões mais importantes da Fábrica. Porque um dos desafios mais importantes para a intervenção artística hoje é o de ser capaz de revelar dimensões desconhecidas ou pouco visíveis do quotidiano social e de lançar temáticas desafiadoras e dos tempos de hoje que levem os vários intervenientes a refletir sobre esta Terra Pátria.

Temáticas desafiadoras onde se procurou, num primeiro momento, perceber como nascem as ideias, responder à pergunta Se não havia nada, como é que surgiu alguma coisa?3, título do livro publicado sobre o ciclo Pensamento, Filosofia e Contemplação Artística que envolveu crianças, adolescentes, pais, filósofos e artistas, tendo um enfoque especial nos mais novos.

Esta preocupação de tentar perceber como nascem as ideias foi complementado por um projeto, Raízes da Curiosidade – Tempo de Ciência e Arte4, onde se experimentou como funciona esta máquina/cérebro onde as ideias nascem, um projeto multidisciplinar que envolveu artistas e neurocientistas. Coproduzido pelo Centro Cultural de Belém e pela Fundação Champalimaud, “Raízes da Curiosidade – Tempo de Ciência e Arte” foi desenvolvido a partir de uma proposta de três cientistas, da qual resultaram uma performance/conferência, um conjunto de oficinas interativas, uma instalação e uma conferência internacional.

A terceira dimensão trabalhada, que na nossa leitura é fundamental para que as ideias que nascem tenham sentido, é a da memória, do reavivar a memória para dar sentido e conteúdo às ideias, o que foi feito no ciclo Memórias de Intenção Política5, um projeto que reuniu cinco espetáculos explorando os temas da Liberdade, Resistência, Colonialismo, Refugiados, Revolução, Cidadania, Possibilidade de Ser.

A quarta dimensão que está a ser desenvolvida resulta, na nossa leitura, da consciência de que as ideias produzidas só poderão dar frutos se houver, num mundo em que as fronteiras têm cada vez mais direito de cidadania, um espaço da não fronteira. E esse espaço teria de ser o mar, esse local privilegiado onde as divisões entre as diferentes áreas do conhecimento podem ser esbatidas e o conhecimento pode, finalmente, ser global. E também porque No fundo Portugal é mar6, porque Nada escapa ao mar em Portugal.

Entre o local e o global
A Dimensão Europeia

Conscientes que hoje para a leitura do mundo a dimensão multidisciplinar já não é suficiente, pois a esta temos que acrescentar uma outra feita não a partir da perspetiva disciplinar, mas dos olhares que dos diferentes locais são produzidos, a Fábrica das Artes integra o Big Bang – Festival de Música e Aventura para um Público Jovem, um projeto internacional que integra oito instituições culturais de sete países europeus e que tem como preocupação central a vontade de criar, trocar e impulsionar projetos musicais para crianças europeias.

O jogo no Centro da Procura do Conhecimento

Quando nos documentos produzidos vemos como a Fábrica das Artes tem assumido um deslocamento, tão radical quanto possível, relativamente à escolarização, à classificação etária, recusando não só uma arte didática e explicativa para a infância como também uma arte estereotipada e embrutecedora, oferecida pelas indústrias culturais e do entretenimento, percebemos que aqui na Fábrica se está a tentar responder à questão porque é que a escola mata a criatividade das crianças.

Porque hoje há uma consciência clara que como o jogo é um instrumento fulcral para a mobilização de cada, para nos manter em ação, para nos levar a superar dificuldades e a desenvolver as competências para a superação das múltiplas dificuldades e provas com que confronta cada um de nós. E esta é uma realidade que encontramos no jardim-de-infância onde o jogo é o eixo central do seu quotidiano e onde as crianças mostram uma capacidade única para a improvisação, o jogo de papéis é uma constante, e estão em permanência a criar situações outras. E a grande perplexidade é como todas estas capacidades ou potencialidades se perdem na passagem para o primeiro ciclo, como é que o sistema se organizou para abafar o espírito do jardim, espírito que no fundo vamos encontrar nos grandes criadores.

A Fábrica das Artes ao explorar a instabilidade da infância em nós, em todas as idades, para ativar ecos de outros tempos, de devir-criança, de devir-artista, a busca de inícios e reinícios de vida, de desejos livres, está a contribuir para que o espírito do jardim-de-infância nos contamine em todas as idades.

Carlos Fragateiro

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