Rio das Pérolas

Ao sabor das palavras dos poetas, seus poemas flutuam nas suas águas e trazem os sentires dos diversos tempos do nosso tempo

Quando vinte e quatro autores, no conceito da poesia, interagem com o seu tempo sentido, de observação e vivência, entre si, múltiplos conceitos emergem, poeticamente, para serem degustados pelos futuros leitores. Escrever sobre Macau, em português, catapultando diversos poetas, que tenham passado pelo território, de forma súbita ou não, podendo, inclusive, ter vivido nesse lugar, ou continuar a viver, faria empertigar, de certo modo, toda a sua sentida criação.

Daí a ideia, que me levou a projectar a possibilidade de conceber um trabalho antológico que pudesse conter a poética interiorizada sobre o olhar que quem por Macau passou, e/ou permanece, nesta parcela asiática, que por alguns séculos recebeu o ser português e comunicou na língua de Camões das mais variadas formas.

“Rio das Pérolas” trouxe consigo a língua portuguesa, a poesia dos tempos remotos e da actualidade, o verso, a ondulação das águas do Delta, que separa as ilhas, também ligadas por pontes, trouxe particularidades míticas, os deuses em palavras e o betão que cresce, em altura, nos caminhos do futuro. Esta antologia proporcionou o encontro de opiniões escritas em português, por autores de Portugal (alguns residentes na RAEM, um residente nos Açores e outro residente na China Continental), do Brasil, de Moçambique e da Guiné-Bissau, numa interacção de muitos tempos neste tempo. Trouxe, também, a língua que hoje é tão solicitada nos meandros escolares de Macau e da China continental, com novos cursos, ano após ano, nesta singularidade única que é a língua de Camões.

Nesta obra participaram vinte e quatro autores, a convite (foram convidados mais dois ou três, que declinaram) e que jubilosos se sentiram, por poderem interagir nesta obra, de forma graciosa e gratuita.

Os autores são: Ana Cristina Alves, António Bondoso, António Correia, António Duarte Mil-Homens, António Graça de Abreu, António José Queiroz, António MR Martins, Carlos Morais José, Deusa d´Africa, Dora Nunes Gago, Fernanda Dias, Fernando Sales Lopes, Francisco Conduto de Pina, Gisela Casimiro, Gisele Wolkoff, Gonçalo Lobo Pinheiro, Henrique Levy, Hirondina Joshua, João Morgado, José Drummond, José Luís Outono, Natalia Borges Polesso, Sara F. Costa e Sellma Luanny.

“Rio das Pérolas” começou a ser pensado no ano de 2017, após o VI Festival Literário de Macau – Rotas das Letras, onde participei, e foi maturando até 2019, quando se tencionou editar, mas a conjuntura e a pandemia não deixaram que tal acontecesse. Só em 2020, após alguns meses de confinamento, em Macau e quando surgiu uma porta aberta, no final de Maio, o trabalho recebido dos autores participantes seguiu para a gráfica e no início de Junho tínhamos livros. O lançamento foi feito no dia 24 de Junho, na Casa de Vidro, da Praça do Tap Seac, pelas 18 horas, perante uma plateia substancial, para aquele espaço e salientando o momento que se atravessava.

Seguiram exemplares para a Livraria Portuguesa, que nos primeiros dias esgotaram, tendo sido restabelecido o respectivo stock, regularmente.

No lançamento estiveram presentes diversas personalidades locais de várias origens, das quais saliento: O cônsul de Portugal para Macau e Hong Kong, Dr. Paulo Cunha Alves, a Vice-Cônsul para Assuntos Comerciais e Investimento, Drª. Carolina Lousinha, autores residentes, homens e mulheres da imprensa escrita, falada e visual, entre outras personalidades da cultura local.

A obra transmite a sagacidade de criação poética abordando temáticas passadas há cinquenta anos, na vivência do autor em causa, ou séculos atrás, pelo respectivo conhecimento de investigação, passando pela passagem do território para China, em 1999, até aos dias de hoje, com alguma projecção do futuro.

Também a busca do imaginário sustenta alguns versos da obra, numa utilização da língua portuguesa, através de autores nados em Portugal, Brasil, Moçambique e Guiné-Bissau e outros que vivem ou viveram na China continental e noutros pontos do mundo. Este acervo poético manipula experiências extraordinárias no aconchego da ténue ondulação para que nos remete o Delta do Rio das Pérolas.

Em palavras soltas poderemos comprovar essas abordagens. António Graça de Abreu escreve-nos assim: “Foi num início de Outono, / ao caminhar solitário pelo vale das Cerejeiras, / com os montes do Oeste serenando almas, / acenando para a velha Pequim,”, em O meu Menino Jesus Chinês. Por sua vez, Henrique Levy, que esteve em Macau há mais de trinta anos, nas funções de professor, escreve no seu poema Cidade de Santo Nome, “a milenar china ergueu / numa montanha de lazúli / a A-má dedicada / sete colinas de saudade / onde o meu peito adormeceu”. Já Sara F. Costa, nesta sua contemporaneidade efusiva, transmite-nos em Mares que se estendiam para dentro do corpo: “ por dentro da história um silêncio curvo / em forma de península / como uma passagem lírica pelo sono. / há frases em latim que descem / as escadas das Ruínas de S. Paulo / e a música em chamas nos nossos breves.”. Entretanto a palavra de quem sentiu Macau na hora da sua passagem para China, como é o caso de José Luís Outono, verseja deste modo no poema Jardim Luís de Camões, “Nos abraços de um jardim / a epopeia criativa de um poeta interroga-se em cortinas / de abraços esculpidos. / Camões ainda por ali reside / na poesia de odores prazenteiros e amores perfeitos.”. Doutro modo a versatilidade poética de Natalia Borges Polesso, brasileira, que passou alguns dias em Macau, aquando na sua participação no VI Festival Literário – Rota das Letras, em 2017, expõe-se desta maneira no seu trabalho Uma Noite em Macau, primeira estrofe, “Vou embora amanhã. / Vamos ao karaokê! Ela disse / enquanto enfiava uma ostra na boca ou, / ao menos, foi o que eu pensei ter ouvido, / dentro daquele som de onda, e / fiz um eco. Karaokê? Ela arregalou os olhos, / que eram minúsculos, e / todos ao redor da mesa balançaram as cabeças / para cima e para baixo / de um lado para o outro.”. De Gisela Casimiro surge esta efémera singeleza sublimada em Templo e Oferenda, “dou-te a minha mão. / Deixo-te a minha mão. / Procuro-a no bolso que partilhámos: / é um bilhete secreto e uma prece.”. Nestes seis exemplos da plena poética contraditória que se une nesta obra sobre a temática Macau, no sentido da sua referência, do seu sentir, da sua observação ou de todos os sentires surgidos no seu espaço, aponto para os versos de alguém que vem da Guiné-Bissau, Francisco Conduto de Pina, o seu breve poema Memórias do passado, “ empacoto as memórias obsoletas / A angústia insiste viver em mim / Que eu carrego mas com certeza / Não as estampo / No Pátio da Eterna Felicidade”.

Nas referidas palavras, e em todas as que restam, a interacção total sobre um território que teve a bandeira portuguesa içada, por vários séculos. Entre o sonho e a realidade uma amálgama de sentires e experiências em vivências que ninguém esquece, depois de pisar o chão daquela cidade.

Outros nomes chegaram, depois, ao meu conhecimento como tendo interagido, de alguma forma, com o território da RAE Macau, espicaçando a perspectiva de poder vir a acontecer um segundo volume desta obra, com mais sentires poéticos e novas revelações.

“Rio das Pérolas” foi um sonho… e continua a sê-lo!

AUTOR DO ARTIGO

ANTÓNIO MR MARTINS

Coordenador  co-autor, em “Rio das Pérolas”.