Olhar da Bahia “Brasileira é tudo …”

O mundo dá voltas e, às voltas, andava a procurar um “textículo”1 qualquer para presentear, e mimar, meu exigente, seleto, culto, e espiritualmente elevado, leitor. Dito isto, prossigo na nobre missão de entreter com literatura ‘metadionisíaca’ e “estético-libidinal”2 pescando de sarrafo uma expressão que ouvi nos corredores bolorentos da pós-graduação em música da UFBA, prestimosa instituição que me investe com o dom da liberdade autocrítica ponto.

Luso é sinônimo de água pura, cristalina, a que “faz velha virar menina”. Mas, o fato, é que vinha escrevendo para esta apolínea coluna, sempre ouvindo música e usando-a para germinar pensamentos em forma de palavras. Meu ponto fraco são as palavras, sobretudo, as ditas no calor úmido do leito de amor e de sexo, de paixão e ternura, de loucura. Aquele mordiscar de orelhas; a voz, rouca, como num romance de Adelaide Carraro, sensual, como numa banda desenhada de Zéfiro. Os conhece, leitor profícuo?! Conhece ou desconhece?!

Se não, nada perde, tudo se renova, se cria, malcriado como a juventude hodierna? Nunca! A juventude baiana é ‘metaeducada’. Hoje, é meu dia de ‘meta’.

Pior que não! Deixei minhas 5 esposas no Brasil. Fiz de tudo para que elas viessem junto pra cá. Para cá, para lá. Como Richard Strauss, ofereci joias, rubis; não funcionou. Tal qual Mahler, convidei Kokoschka. Neither. Como Gogh, ameacei cortar a orelha. Meus amores, detiveram-se um pouco, fitaram-me, inquisidoras, de cima a baixo, e continuaram o que estavam a fazer, a comerem seus cuscuzes. Elas só gostam de comê-los com ovos. Umas santas-do-pau-não-oco!

Mas, não se assustem, não era o marroquino, globalizado, chique. Era o de Xique-xique mesmo, como o da nossa Severina. E, ressalto, só há um povo mais bairrista, mais orgulhoso da sua terra e da sua gente, mais cioso da sua cultura, também voltada para o azulado Atlântico, que o bom baiano: o açoriano de São Miguel. Valha-me, Meu Santo Cristo dos Milagres!

Certa feita, mal emigrara para Portugal, refugiei-me nesta ilha santa (reservarei algumas colunas desta prestimosa publicação exclusivamente para narrar “As Aventuras e Venturas do Cavaleiro de Santa Cecília – Euzinho! – mas, agora, ‘necas de pitibiribas. Voltemo-nos, pois, ao tema do presente palimpsesto virtual e azedo).

Como falava, acabara de chegar à Portugal, 500 kg de bagagem (a TAP não me cobrou daquela vez porque Deus era brasileiro…), 70 ‘euritos’ no bolso (rico dinheirinho). E, se assustado estava, mais ainda fiquei, enquanto via, imobilizado, a ‘merreca’ se evaporar, quase que instantaneamente e por completo, no aeroporto de Lisboa. Os ‘meganhas do SEF (sempre zelosos, polidos e inzoneiros) fizeram de tudo para que confessasse tráfico internacional de axé music. Eu, qual Pedro, neguei duas vezes e meia (depois, desenvolvo esta história, senão vira ‘mangue’).

Pois é, como eu não confessava, desistiram.

Ouvi, então, lá de dentro do Castelo de Ducet, uma voz que dizia: “Manda este tolo para as ilhas. Lá darão cabo dele!”. E deram. E como deram.

Nos Açores, fui “amigo do rei”,3 de presidentes de câmara, vereadores, presidente de junta, das crianças, enfim, teria chances na política peninsular e sofrida. Pior não ficaria, asseguro-lhe politizado leitor. Sou mais de esquerda do que a imaginação pode conceber. Troppo Sinistro, tropo sinistro, capice?

Andava com meu pastor alemão a tiracolo, sossegado, comendo fofas ou fufas (nunca vou aprender), quando dois velhinhos simpáticos e educados me chamaram com doce voz: “Brasileiro! Ô, brasileiro; anda cá!”.

Olhei prum lado, pro outro, pra trás, nunca iria imaginar que dois velhos tão tipicamente micaelenses quisessem perder tempo com um cromo como eu. Cromagnon. Indaguei, apenas franzindo o cenho, se era comigo que falavam, mas não se comoveram com meu olhar de maestro regendo Firebird versão 1919… 1945… E repetiram ainda mais veementemente: “Brasileiro! Brasileeeirô! Ô, corisco mal amanhado; anda cá!”. Era comigo.

Embora não soubesse o que significava, em micaelense, o termo ‘corisco’, este, em especial ‘prum’ nordestino, soa como Bálsamo Benguê. Curioso e de sorriso estampado na fuça, simpático como todo o emigrante que quer desesperadamente sobreviver em terra estrangeira, dirigi-me aos sortudos reivindicantes, enquanto pensava, cá com meus botões: “que felizardos são esses que irão gozar da minha presença e forte espiritualidade?”. Não precisei nem me apresentar, não deram chance.

O mais velho, olhou pra mim, cuspiu no chão e disparou: “Ô, brasileiro… No Brêsi só ten púti!”. Não precisou nem de legenda. Atordoado, respeitosamente, retruquei: “mas, meu senhor, minha mãe é brasileira!’. E o mais novo disse, comovido: — “a senhora sua ‘mã’ non é púti!”. Ao que o mais velho completou: — “Mas tota brasilêra é púti!”. Ao que novamente, em tom protesto, educadamente retruquei: mas, meu senhor, minha irmã é brasileira!!! E o novo emendou: — “a senhora sua irmã tamban non é púti!”.

Aliviado, agradeci a prosa, achei que um dia ainda iria precisar dela (como vejo agora) e o episódio só fez meu amor por aquela terra aumentar. Confesso, gosto mil vezes mais dos Açores do que do continente. A mulher açoriana exala sensualidade, tem um remelexo, um olhar depravado, me sentia em casa. E os romeiros!? Que cantigas, que cantorias, e o padre que me presenteava quilos e quilos de carne e tinha a TV com os canais mais picantes, todos liberados?! Isso é que é terra, gente!!! O continente tem muito o que aprender com os ilhéus, começando pelo gerúndio e pela flor do lácio, lá, culta e bela.

Todas as portas que bati se abriram. Terra milagrosa. E Furnas? E o bolo lêvedo? Como um país consegue viver sem comer bolo lêvedo com queijo de São Jorge??? Impossível. Mas a saudade do Brasil era enorme, era enorme. E a de Portugal também é enorme. Amo minhas saudades. “Saudade mata a gente”, diz um compositor alagoano, que nunca se lembra das pessoas a ele apresentadas. Pepeu Gomes das Alagoas que é. Um Wagner nordestino, mas com peças de curtíssima duração. Talento não escolhe a alma que encarna…

O fato é que estou mais para Tabaris do que para juiz. E, nunca imaginei, que, um dia, na Terra de Vera Cruz Credo, juiz de futebol fosse mais respeitado do que juiz-juiz. O Brasil consegue esculhambar com tudo. Existe coisa melhor do que o Caos? Caos é o alfa e o ômega. Caos é o inimigo de Maxell Smart. Gosto muito e muito e muito.

Bem, enrolei o que pude (preciso ‘matar este tigre’). Então, quando sinto saudade, eu choro, choro; choro, copiosamente. Me verto e reverto em lágrimas. Mas, se chorava, cantava, e se sofria, sorria, mesmo de quarentena em Portugal, meu olhar é da Bahia.

1 Pego emprestado termo do filósofo, maestro, empresário, produtor, católico e apostólico Fred Dantas.

2 Furtado do professor Paulo Costa Lima.

3 Não resisti e aproprie-me também desta…

AUTOR DO ARTIGO

ALFREDO MOURA