Planeta, Pessoas e Parcerias

Planeta, Pessoas e Parcerias

Uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais harmoniosa

LP – Luís Matos Martins está liderar duas organizações com uma grande capacidade de intervenção, não só em Portugal, mas em outros países do universo da língua portuguesa, os Territórios Criativos e a TESE. O que caracteriza cada uma destas organizações e quais os pontos de contacto e de complementaridade entre elas?

LMMOs Territórios Criativos são uma empresa de consultoria, formação, apoio à gestão e inovação, focada nas áreas do empreendedorismo, estratégia e gestão. Atuamos em 119 territórios de norte a sul de Portugal – incluindo Madeira e Açores – através do desenho, montagem e desenvolvimento de incubadoras e de centros de negócios, programas de formação para empreendedores, empresários e técnicos de municípios. Organizamos programas de curta duração, como “bootcamps”, e apoiamos organizações sociais, autarcas e autarquias a definirem a sua visão estratégica, privilegiando sempre territórios do interior de baixa e média densidade. Ao nível internacional, para além de alguma experiência no mercado angolano, temos projetos na Roménia e em Cabo Verde: são locais onde também prestamos apoio ao nível da consultoria, elaboração de planos estratégicos e planos de negócio.

Luís Matos Martins, Presidente da TESE, Administrador dos Territórios Criativos

A TESE é uma organização não-governamental (ONG) sediada em Lisboa que se dedica à promoção do emprego, saneamento e energia em países em desenvolvimento. Desde o dia 30 de junho deste ano – data em que fui eleito presidente – a TESE colocou São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde como destinos prioritários dos seus projetos. A capacitação da população ativa destes países para o empreendedorismo e para o lançamento dos seus próprios negócios – identificando pessoas com potencial para organizarem pequenas empresas a partir da prestação de serviços para os quais vão ser preparados – passou a ser a missão principal da TESE nestes territórios. Para isso, a TESE está a dinamizar programas de formação em mentoria de micronegócios e irá lançar, de forma gradual, programas de formação básica em ciências empresariais (noções de contabilidade, processos administrativos, gestão de stocks, etc.).

Os Territórios Criativos podem complementar o trabalho da TESE nas dimensões ligadas aos negócios, através da criação de incubadoras e de empresas e da conceção de modelos de negócio para as empresas cujo nascimento se apadrinha. Fizemos, por exemplo, uma candidatura ao Instituto Camões para, em conjunto, desenharmos uma incubadora de talentos que vai atuar em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe.

LP – Como é que desenharam essa incubadora de talentos e qual a estratégia e os instrumentos que utilizam para descobrir e desenvolver as capacidades que caracterizam um talento? Que capacidades são essas?

LMM – A candidatura submetida para a incubadora de talentos tem como objetivo efetuar um diagnóstico dos talentos locais, aferir as suas necessidades e, com base nisso, desenhar programas de formação e de apoio, programas de incubação e Bootcamps, dentro das áreas de Música e Artes Cénicas. Esta incubadora de talentos pretende, por um lado, apoiar quem pretenda integrar o mercado de trabalho e, por outro, aqueles que querem implementar os seus próprios negócios. Para além do talento e das competências ao nível artístico, este projeto tem como objetivo desenvolver as competências empreendedoras e soft skills dos talentos locais, assim como demonstrar a importância dos mesmos.

LP – É possível mostrar experiências ou projetos que mostrem, como diz, que um empreendedor é alguém que não se conforma com o que lhe é apresentado, é alguém que tenta ser agente de mudança – quer trabalhe numa autarquia, no governo central, numa associação, numa empresa pequena, grande, média ou numa startup?

LMMEu entendo que o empreendedorismo é uma forma inconformada de olhar no mundo. O empreendedor é alguém que se foca na solução e não no problema, na necessidade ou na oportunidade e, portanto, quando um autarca ou um técnico de um município deteta um problema no seu território e desenvolve um projeto para colmatar esse mesmo problema, essa necessidade ou essa oportunidade, está a ser empreendedor. Da mesma forma, alguém que trabalhe numa associação e que desenvolva uma candidatura ou angarie financiamento para implementar em um projeto, também ele está a ser empreendedor. O mesmo nas empresas, quando se desenham novos processos ou novas dinâmicas, estão também eles a ser empreendedores. Um empreendedor é, portanto, alguém que tem não só a capacidade de identificar uma oportunidade, como também construir um projeto e implementá-lo.

 

LP – Qual a importância estratégica do que está a fazer e quais as novas perspetivas que pode abrir?

LMM Na minha atividade profissional e associativa tento sempre olhar para onde os outros não estão a olhar. Nos Territórios Criativos começámos há vários anos a investir no interior de Portugal, através da implementação de programas de dinamização dos territórios de baixa e média densidade, em prol do aumento de competitividade dessas zonas. A pandemia do novo coronavírus veio dar-nos razão: o interior de Portugal tem-se revelado um conjunto de regiões quase imune à Covid-19, o que aumentou a sua competitividade enquanto território e lhe valeu uma primavera e um verão em 2020 com uma procura histórica em termos de turismo e de restauração, ao contrário do que sucedeu nas zonas turísticas tradicionais.

LP – Pode concretizar quais os programas de dinamização dos territórios de baixa e média densidade que se concretizaram, e quais os resultados ao nível do aumento de competitividade dessas zonas?

LMM – Nas diversas iniciativas dinamizadas pelos Territórios Criativos e que têm como objetivo estimular o ecossistema empreendedor, têm vindo a contar com mais de 9518 empreendedores! Já dinamizaram 67 Bootcamps de empreendedorismo e têm vindo a impactar mais de 119 territórios e 6 países. E continuamos a dinamizar outras iniciativas. Mais a curto prazo, iremos contar com o Bootcamp de Aceleração da Startup Portimão, o Programa de Aceleração de Alvaiázere+, o Bootcamp da Incuba+ Santa Maria, o Bootcamp da InUAc – Incubadora de Negócios da Universidade dos Açores e o Social UP (um programa de aceleração e valorização do empreendedorismo social e solidário), em Angra do Heroísmo.

LP – Sabemos que estão a dinamizar um programa de ideação na área do Turismo com o objetivo de procurarem ideias inovadoras, com soluções interessantes para apresentar, quer a empresas do setor, quer ao consumidor final. Que ideias inovadoras ou soluções interessantes é que já encontraram?

LMM – Mais recentemente, contámos com diversos projetos na área do Turismo Sustentável e Economia Circular, que participaram no programa de ideação Green Up. Um deste projetos inovadores é a SWRS, um sistema inovador para reaproveitar as águas cinzentas, isto é, as águas dos nossos duches, para as descargas sanitárias; outro projeto que conquistou o pódio do programa foi o Compost Up, um serviço de recolha de resíduos orgânicos pelos restaurantes, que permite transformar estes resíduos num vermicomposto de alta qualidade; a The Campsite é uma rede de campsites localizados no meio da natureza, onde toda a experiência é pensada e desenhada ao detalhe para servir viajantes adeptos do caravanismo. Já dentro da Inovação Aberta, no âmbito do programa Linking Up, temos vindo a acompanhar diversas soluções inovadoras para o setor do Turismo, como, por exemplo, uma app para uma empresa de eventos que integre todos os detalhes do evento e que possibilita aos visitantes carregarem o resultado do seu teste à COVID-19, efetuado há menos de 48 horas, ou, caso não o tenham, que lhes permite fazer booking de um teste rápido, num dos pontos disponibilizados; outras soluções passam, por exemplo, pela promoção da eficiência energética e de gestão de água, assim como soluções digitais que proporcionem experiências seamless aos consumidores.

LP – Estão a ser criadas, ou já estão mesmo em funcionamento, uma série de incubadoras em Portugal. O modelo da sua conceção é o mesmo ou diferenciam-se de acordo com a região onde estão implantadas? E qual é o grande objetivo da sua abertura?

LMM – São claramente diferentes umas das outras. Uma incubadora que está no norte-litoral tem caraterísticas completamente diferentes de uma incubadora que está no centro-interior. Ao definir a sua estratégia, as incubadoras deverão focar-se em dois pontos: no contexto onde estão inseridas, tendo em conta a identidade territorial, os recursos locais e a população; e na imagem ideal do território que as lideranças locais querem passar para o exterior. Ou seja, devemos olhar sempre para o que existe, mas também para onde os nossos clientes pretendem chegar: saber o que eles sonham, qual é o seu horizonte, pode ser muito inspirador para atingir os melhores resultados. Por outro lado, a entidade que “alimenta” cada incubadora também difere consoante a região: pode ser uma universidade, uma associação empresarial ou um município. Quando estamos envolvidos na criação de incubadoras, há três objetivos que nunca se alteram, seja qual for a zona do país: fixar pessoas; gerar emprego; e desenvolver a economia.

LP – Mas esses são princípios gerais que funcionam para a implantação duma incubadora. Mas hoje, para percebermos as potencialidades das diferentes regiões/incubadoras necessitamos de conhecer as apostas estratégicas de cada uma, qual a marca que as diferencia?

LMMAs incubadoras, geralmente, são locais e geridas pelo município, por uma associação empresarial ou podem ser integradas no ecossistema de uma universidade. Normalmente, um empreendedor quando tem um projeto ou uma ideia de negócio, se está perto de um destes ecossistemas, perto de uma destas realidades, acaba por se deslocar até lá. Por exemplo, um aluno ou um professor que tenha conhecimento de determinada universidade que tem um setor de atividade onde ele quer desenvolver o seu negócio poderá deslocar-se até à mesma. No caso de ser um empreendedor que está em determinado território ou município, ele pode procurar a incubadora de proximidade e, mesmo que não seja a sua área core, a incubadora irá direcionar o empreendedor para a mais adequada.

 

LP –Quais são as linhas principais da intervenção da TESE na Guiné Bissau e em São Tomé e Príncipe? Como são definidas essas estratégias de intervenção, qual a mobilização e participação dos quadros locais nesse processo e os resultados que se estão a sentir?

LMM – A TESE é a promotora de projetos de instalação de centrais solares na Guiné-Bissau, tendo inaugurado em 2016 uma grande unidade que abastece mais de 600 famílias na cidade de Bambadinca. É também responsável pela instalação de pequenos sistemas fotovoltaicos autónomos para fornecer energia elétrica a centros comunitários. Tem igualmente projetos de saneamento básico em curso, os quais contam com programas de apoio à construção de latrinas para unidades familiares, de latrinas comunitárias e de ações de sensibilização à população. Na região do Oio e em Bafatá desenvolve projetos de abastecimento de água, para uso doméstico e comunitário, associando os seus projetos de energia elétrica à construção de sistemas de irrigação de campos de arroz.

A TESE está a montar, em cada um dos seus projetos, unidades de formação que, não só irão preparar as mulheres e os homens guineenses do ponto de vista técnico para a manutenção dos sistemas ao longo dos anos e para a reparação de inevitáveis avarias, como também os irá capacitar para desenvolverem essas mesmas atividades a partir de pequenas empresas, pessoais ou familiares, que prestem esses serviços às entidades que gerem os projetos, às comunidades ou ao próprio Estado guineense.

Neste momento, a TESE está envolvida em dois projetos – o “Ianda” e o “Ainda” – que, no conjunto, ultrapassam os 12 milhões de euros. A fatia de leão, cerca de 9 milhões de euros, cabe ao Ianda e destina-se à instalação de centrais solares, à construção de redes de abastecimento de água e de saneamento: só a central fotovoltaica que irá abastecer a cidade de Bolama representa, até 2024, 2,6 milhões de euros.

Nos arredores de Bafatá, o projeto ainda está a associar a instalação de painéis solares à construção de um sistema de irrigação de campos agrícolas que, quando funcionar em pleno, irá permitir a duplicação da produção de arroz na região: em vez de ter apenas um ciclo de gestação e colheita entre maio e outubro (a estação das chuvas), os agricultores passam a poder voltar a semear em novembro, inundar os campos, e colher pela segunda vez em abril.

No caso de São Tomé e Príncipe, a TESE iniciou em novembro um programa de sensibilização da população para reduzir as perdas comerciais da EMAE, a empresa estatal de energia elétrica. Este programa – que se traduz na campanha “Ku Kunxensa Tudu Ngê Ká Tê Kandja” – vai ser protagonizado por mulheres residentes nos bairros e aldeias do país que funcionarão como embaixadoras da EMAE junto das suas comunidades. Escolhemos selecionar mulheres da própria comunidade para levar a cabo esta ação, uma vez que estas recolhem maior confiança por parte da população são-tomense.

O objetivo é sensibilizar as pessoas para reduzirem os consumos e para não fazerem ligações diretas às redes públicas de eletricidade.

Este programa irá promover uma atitude empreendedora nas mulheres embaixadoras, preparando-as para programas futuros de capacitação para o empreendedorismo e para o lançamento dos seus próprios negócios. As embaixadoras terão o seu posto de trabalho e irão ver melhoradas as suas fontes de rendimento. A formação que lhes foi dada teve conteúdos de comunicação, de interação com as comunidades, de promoção do consumo eficiente de energia elétrica: estamos a fomentar nestas mulheres uma atitude empreendedora que, em muitos casos, irá seguramente resultar no lançamento de microempresas.

Em São Tomé e Príncipe a TESE irá lançar e gerir programas de formação básica em ciências empresariais (noções de contabilidade, processos administrativos, gestão de stocks, etc.), identificando pessoas com potencial para empreenderem negócios. Os formadores da TESE terão depois programas de mentoria para acompanhar os formandos que lancem pequenas empresas sozinhos ou com sócios. Nessa fase haverá também sessões de marketing e de angariação de clientes, bem como apoio a elaborar candidaturas para financiamento com base em microcrédito.

 

A TESE tem 20 pessoas na Guiné-Bissau, das quais 15 são locais. Em São Tomé e Príncipe temos, a full-time, três pessoas, sendo duas locais. Os locais estão sempre em maioria, sendo este um dos nossos objetivos: utilizar todos os projetos da TESE para criar e transmitir competências, de diversos níveis, à população local.

LP – O facto de estarem a intervir em países e comunidades, com outra visão e perspetiva do mundo, tem contribuído para modificar as intervenções que estão a desenvolver em Portugal. Isto porque hoje, mais do que nunca, as ideias e as inspirações têm de vir de todos os lados do mundo, e essa vai ser a grande riqueza do futuro. Estou a recordar uma afirmação do cineasta Flora Gomes, publicada na revista anterior, que é altura dos eurocêntricos mudarem a perceção e notar a grandeza, a quantidade e a qualidade das imagens que vêm do mundo, da África, que eles construíram nas suas mentes. Imagens, acrescentamos nós, que têm de ser reconfiguradas e, naturalmente, enriquecidas.

Penso que estamos de acordo quando afirma que a inovação só é possível se existirem talentos suficientes para suportar os processos de inovação. O processo mais estruturado para a descoberta de talentos é, para nós, o desporto, e, em especial, o futebol. Mas aí começa-se a trabalhar logo desde crianças e há olheiros que são capazes de os detetar desde muito cedo. Aos outros níveis esse processo começa muito tarde e não existe um sistema organizado de olheiros. Como pensa que poderia ou deveria ser feito para que este processo de inovação fosse assumido desde muito cedo, e que o próprio sistema escolar estivesse organizado para o assumir?

LMM – De facto, o que descreve já está a acontecer. Há muitas escolas que já estão a ter, de uma forma facultativa, programas de empreendedorismo e de apresentação de projetos, mesmo logo ao nível do jardim de infância. Há escolas que já colocam as crianças a explorar e a desenvolver pensamento crítico sobre diversos temas, nomeadamente através de histórias que lhes são contadas e que as obrigam a questionar os factos que lhes são relatados: sobre um determinado tema, vão questionando, vendo vídeos, filmes e desenhos animados. A partir daí, constroem um projeto com a informação que recolheram das várias fontes a que recorrem, apresentando depois o que sabem ao resto da turma.

Do 1º ciclo ao 12º ano já há vários programas de empreendedorismo, muitos deles dinamizados pelos municípios ou pelas comunidades intermunicipais. Os Territórios Criativos, por exemplo, fazem esse tipo de programas através da metodologia StartIUPI, a qual ajuda os jovens empreendedores na organização e no planeamento das fases de ideação e implementação dos seus projetos.

Apesar de estes programas não terem um caráter obrigatório, já estamos a dar alguns passos nesse sentido. As competências de criar projetos, de identificar de oportunidades e apresentar soluções devem ser trabalhadas desde cedo. As questões comportamentais, as chamadas soft skills, são – em muitos casos – mais relevantes do que algumas competências técnicas: nunca estão desatualizadas.

LP – Sampaio da Nóvoa disse, na entrevista que aqui lhe fizemos, que “o pior que nos poderia acontecer seria considerar esta pandemia como um parêntesis, como se fosse possível, e desejável, regressar ao “normal” que aqui nos trouxe. Precisamos de libertar o futuro de ideias feitas, de preconceitos, de visões únicas e totalitárias do mundo, de comportamentos que estão a destruir a vida e a humanidade. Para isso, é urgente substituir as certezas pelas dúvidas, dar lugar a conversas plurais”. Essa libertação do futuro de ideias feitas só poderá ser feita se os jovens forem os seus principais protagonistas. Pergunto-lhe por isso sobre o que é necessário fazer para formar jovens capazes de responder aos desafios do futuro, de inventar uma nova forma de estar, e quais os perfis desses jovens?

LMM – Estou convencido que, às vezes, também há a tendência do ser humano para querer preparar tudo, informar toda a gente e ter todos os recursos disponíveis para o que vem aí. Às vezes também é importante fazer essa descoberta. Às vezes há vantagens em que a educação seja mais espontânea, menos formal, mais tranquila, mais despreocupada, sem que deixe de ser educação. Esta é a minha visão. Não é fácil praticar isto, mas identifico-me muito com este tipo de pedagogia.

Tudo o que possa dotar os jovens de competências para se focarem na solução e não no problema, para construírem projetos, para cooperarem entre si, para estarem preocupados com aqueles que têm menos, é parte da educação. Cultivar a preocupação dos jovens com o seu planeta, faz parte da educação. Em síntese, eu diria: Planeta, Pessoas e Parcerias. Estes três “P’s” são complementares e podem contribuir para uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais harmoniosa.

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