Brasil, Mostra a tua cara

A imagem que o Brasil tinha de si mesmo, menos de dez anos atrás, correspondia bastante àquela que os outros povos lhe atribuíam: uma gente benevolente, de fácil contato, simpática, festiva e risonha. Uma terra privilegiada pelo sol, pelo clima, por uma certa manemolência das gentes traduzida na paixão pelo futebol, pelo samba, pelas belezas das praias, por uma suposta e pacífica miscigenação, pela capacidade de “dar nó em pingo d’água”, pelo “deixar-se estar para ver como é que fica”.

Foto: JBPress no Visualhunt

O Brasil de Lula, inclusive, vencia as suas grandes mazelas sociais, tirando milhões da pobreza, sediava a Copa do Mundo, as Olímpiadas, o Brasil mostrava ao mundo um jeito novo de fazer política, conciliando opostos, vivendo em franco e risonho desenvolvimento, elegendo uma mulher presidenta da república, assim avançando em costumes e no convívio pacífico com diferenças e alteridades.

Esse amálgama cultural que daria origem à pátria, reunia como ideia essa junção artística do popular e do erudito, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade e de tantas outras personagens como a Bossa Nova, o malandro, o ladino, constituindo um certo modo de viver original e singular que teria tudo a ensinar a um mundo ao esboçar um momento pós-capitalista. Esta ideia civilizatória que reunia os traços originários e afetivos da natureza popular à sofisticação tecnológica e erudita daquilo que era antropofagizado da Europa, acabaria por determinar o nosso projeto de nação. Ou seja, um, digamos, projeto artístico cultural formando as relações sociais e sobredeterminando-as. Mais ou menos como Shakespeare para o Reino Unido, a língua inglesa formando uma especificidade de ser.

Esta é a ideia que aparentemente vingou: o homem cordial, (cujo conceito original já apontava algum descompasso como marca: a política como forma de tornar privado aquilo que é eminentemente publico, o que de certa forma é uma origem portuguesa, cunhada no popular “desenrasca”). Mas o que se dissemina e difunde simpaticamente é a marca do coração e não as capilaridades da cordialidade.

Marco António Rodrigues, foto de Carlos Gomes.

A surpresa começa em 2013 quando, de repente, do nada, um milhão de pessoas ocupam as ruas empunhando bandeiras e pautas de extrema direita, pedindo a volta dos quartéis. No início, o estopim foram as altas das passagens de transporte público, evoluindo rapidamente para bandeiras anticorrupção, anti-midia, anti-política. A partir de junho de 2013, os acontecimentos evoluíram rapidamente. A queda internacional do valor das commodities, trazendo dificuldades governamentais para a continuidade das políticas sociais do governo popular de Dilma Roussef, catalisaram a insatisfação popular. E de repente, um fenômeno que nunca se vira na história recente do país, tomou as ruas das grandes cidades quase que diariamente. Como uma caixa de Pandora aberta, o esgoto veio à superfície e se multiplicaram as manifestações violentas culminando no golpe institucional do impeachment da presidente articulado por todas as forças reacionárias da sociedade civil: políticos, judiciário, mídias, igrejas evangélicas e, forças militares representadas também pelas polícias militares e milicianas estaduais.

Foto: PSB Nacional 40 no VisualHunt

A direita colocou no lugar da presidenta eleita, o vice, um conspirador de primeira hora, um dos erros fatais do Partido dos Trabalhadores quando dois anos antes escolhera o boneco de ventríloquo para compor a chapa na tentativa de uma coalizão governamental.

O governo tampão de dois anos do vampiro Temer foi um desastre absoluto, favorecendo as condições para a volta do estamento militar agora legitimamente eleito com cinquenta e oito milhões de votos. Estava recauchutada a estrada que ligava a ditadura de 21 anos (1964 a 1985) aos anos tristes reinaugurados naquela eleição de 2018. Os militares voltam ao poder de forma relativamente fácil, já que o aparato da repressão de cinquenta anos atrás não fora sequer enfrentado nos anos da festa da democracia.

E finalmente a face real da sociedade brasileira ficava revelada: mortes como a de Marielle Franco são emblema e bandeira de um país onde são sacrificadas 60.000 pessoas por ano em mortes violentas na maioria patrocinadas por polícias militares contra a população preta e pobre. A selvajaria, a barbárie, a violência é real. A cordialidade que de certa forma dava prumo e lustro cultural a uma sociedade de classes sanguinariamente desigual submerge de forma absolutamente catastrófica e rápida num mar de merda.

Foto: midianinja no Visualhunt

Se há algum projeto que sobrevive e emerge é o de há muito: colonizador, escravocrata, espoliador, miliciano, genocida e internacionalista.

No momento em que eu escrevo são 300.000 mortos pela covid. Esse relógio não pára e avança aos segundos. Ontem mais de três mil mortos: recordes mundiais e absolutos diários.

Existem aparentes e significativas contradições: ontem o Brasil registrava também um aumento espetacular de investimentos estrangeiros no país já no primeiro bimestre de 2021. Juntando os pontos, logo se vê que as políticas de estado vão muito bem, sim senhor. A cruzada permanente do governo federal contra qualquer tipo de isolamento social, com variadas formas de lockdowns mitigados (mesmo levando em conta que a saúde publica dos 27 estados brasileiros está em absoluta falência, faltando não só leitos de uti, mas anestésicos para entubamento, médicos, enfermeiros e todo tipo de pessoal especializado) é um sucesso absoluto para a comunidade financeira internacional. O presidente da república tem total coerência com as declarações onde reiteradamente reafirmou desde antes de sua posse, que sua missão e intuito não seria jamais pautada por outra coisa que não fosse a “destruição do que aí está”.

E o que aí estava e hoje é um absoluto escombro. Era um Brasil para os brasileiros.

Assim, o Brasil vai virando um grande entreposto comercial, um reservatório de matérias primas para o capital internacional, reforçando sua vocação tão cantada em verso e prosa desde o Achamento pelos portugueses.

Foto: ucmgoficial no Visualhunt

O Brasil não é para brasileiros! Todo o parque industrial vai sendo desmontado, as reservas e empresas petrolíferas estatais privatizadas, a reforma fiscal e da seguridade social vai sendo promovida a custo de arrocho salarial, quebra de garantias trabalhistas, mas principalmente, a jóia da coroa, o golpe de sorte que lhes caiu ao colo como benesse dos deuses: A COVID!!!! Sim senhor, se calcularmos que 70% das já 300.000 mortes são de idosos, gente fora da cadeira produtiva que só dá despesa em pensões e saúde publica, quanto o estado economiza?

Jogada de mestre, Bolsonaro e quadrilha se atiram diariamente às redes sociais e a imprensa em geral (que pisca um olho combatendo sua vocação genocida e com o outro aplaude suas ações na área econômica) criando fatos em torno de sua estratégia econômica. Estratégia esta que inclui como linha auxiliar a anulação de direitos trabalhistas, bem como a demonização e destruição de instituições públicas de excelência como SUS, IBGE, Universidades Públicas. Lá estão os funcionários públicos na berlinda do corte, da restrição de salários (deve aqui ter se inspirado no vosso finado Passos Coelho), do abismo. A palavra de ordem é: tudo que é publico deverá ser privado. Conta aí, o patético capitão, com o concurso de milicos, que muito diferente da vocação humanista e libertária dos militares portugueses da Revolução dos Cravos, tem em terras verde amarelas apetite vorazmente entreguista. São mais de 6.000 milicos em cargos civis neste governo de hoje. Trocaram rapidamente a casaca nacional desenvolvimentista da ditadura de 64 pelo terno e gravata do neo fascismo internacionalista.

Mais uma vez, é benesse da mídia quando tenta apor a esse governo o epiteto de negacionista. Não tem nada de negativo aqui: são francamente afirmativos. Criminosamente afirmativos.

Nesse cenário renasce o Lula Lá. Novamente como estrela da esperança. Depois de longuíssima batalha jurídica, 580 dias de prisão, esculhambação pública diária, Lula tem resgatados os seus direitos políticos. Até agora só consigo entender o movimento de parte do Supremo tribunal botando suspeição no Juízo criminoso e parcial do Sérgio Moro, como um ato de consciência culpada. Porque todo o Brasil que minimamente pensa e não fora contaminado pelo conluio das elites, das mídias, das igrejinhas, dos milicos e da politicanalha, sabia e sabe, desde sempre que a armação contra Lula era sacanagem da mais grossa. Então, alguns juízes, talvez preocupados com o papel que a posteridade lhes reservaria, resolve libertar a História.

E a História é essa: salvo alguma grande cagada que as esquerdas façam, em 2022 Lula será eleito. Já se sentem por aqui os efeitos desse acontecimento. O céu tá mais azul e parece que aquela nuvem cinzenta que nos acompanha dia e noite começa a dar mostras de alguma fragilidade. Tremem o Bozo e seus cumplices.

Lula vai ter um trabalho colossal: vai ter que promover uma reforma política porque com um parlamento com representação desproporcional de estados e composto por 40% de empresários, com representação mínima de trabalhadores e trabalhadoras, com representação desigual de raças, o país não avança. Vai ter que promover uma gigantesca reforma fiscal que taxe grandes fortunas, heranças, bancos, capital especulativo, remessa de lucros. Os partidos de esquerda terão que retomar o que abandonaram por arrogância quando compuseram os governos populares (esqueceram, ou não perceberam que detinham o governo mas não o poder), ou seja, a militância de base, a disputa por um pensamento humanista e de cidadania versus um pensamento mercadológico e empreendedorista; vai ter que promover uma democratização das mídias, dominadas hoje por meia dúzia de famílias; vai ter que entender a cultura e sua promoção como fator de qualificação política e da política.

Alguma coisa do modelo grego, embora eurocêntrico e colonialista ainda vale para essas plagas: a tragédia grega que expectamos e temos vivido tem na sua ponta a catarse como ensinamento. As ruinas serão os testemunhos físicos dessa história: cada cadáver, cada fragmento semi-enterrado, cada decreto perverso.

Ou seja, sozinho, nem que fosse o Super Homem, nem que tivesse o dom da ubiquidade, nem que fosse eterno, daria conta da imensidão da tarefa. As pessoas de boa vontade estão e estarão autoconvocadas para um grande movimento popular que reafirme e resgate a vida formando um corpo coletivo forte o suficiente pra enfrentar a guerra que virá. Porque somos Lula. E somos muitos.

Por enquanto a tarefa imediata, urgente e absolutamente necessária é: IMPEACHMENT JÁ!!!!

AUTOR DO ARTIGO

MARCO ANTONIO RODRIGUES

A imagem que o Brasil tinha de si mesmo, menos de dez anos atrás, correspondia bastante àquela que os outros povos lhe atribuíam: uma gente benevolente, de fácil contato, simpática, festiva e risonha.
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