Zeca Afonso – O Triângulo Mágico na sua Vida e Obra | África,Portugal, Galiza

Sou, no fundo, fruto de muitas gentes, de muitos lugares, de muitos dissabores (José Afonso)

Há um triângulo mágico no imaginário de José Afonso que, talvez de forma não muito perceptível, influenciou inequivocamente a sua vida, obra, criação artística e a sua abertura para a compreensão do mundo que o rodeava.

África, Portugal, Galiza são os vértices!

ÁFRICA. Como é sabido, José Afonso fruto das suas relações familiares vai para Angola com três anos. Com seis anos regressa a Portugal, com sete vai para Moçambique e com 8 anos regressa de novo ao então território continental.

Homem já formado e depois das experiências estudantis e sociais em Coimbra, está em Moçambique entre os trinta e cinco e os trinta e oito anos. Entre 1964/65 encontra-se em Lourenço Marques (actual Maputo) e entre parte de 1965 até parte de 1967 vai para a cidade da Beira de onde regressa ao território continental em Setembro desse ano.

Esta intermitência no seu relacionamento com o continente africano – quase como se lhe roubassem o prazer de um estável e perene amor – leva José Afonso a procurar absorver os sonhos, os ritmos e os modos de vida que aí o rodeavam.

Esta procura traduziu-se nas aquisições e aprendizagens que foi fazendo guardando na memória, alguma das vezes durante anos, conhecimento que mais tarde vai utilizar no seu processo criativo.

Do ponto de vista político José Afonso, com alguma modéstia, é claro: O meu baptismo politico começa em África. Estava ali a dois passos do oprimido. As suas afirmações vertidas em múltiplas declarações e entrevistas são inequívocas: a população branca eivada de sentimentos colonialistas incomodava-o e merecia-lhe rejeição.

Talvez essa paz inquieta, o sossego desassossegado, a matriz de um mundo a descobrir que lhe entrava quotidianamente olhos adentro tenham ocupado o seu imaginário durante esses últimos três anos de modo a que não tenha tipo possibilidade, ou vontade, de gravar qualquer registo público. Como é sabido o seu primeiro grande trabalho – “Baladas e Canções” (12 músicas com a viola de Rui Pato) – foi editado em 1964, exactamente antes da sua partida para África.

O facto de não ter lançado qualquer registo público nesse período não significa que não tenha deixado voar a sua inspiração poética e musical.

Em Moçambique, 1965, criou “Vejam Bem” (Cantares do Andarilho/1968) incluída no filme de José Cardoso, “O Anúncio” compondo também cinco músicas para a peça “A Excepção e a Regra” (Bertolt Brecht) levada à cena pelo Teatro de Amadores da Beira.

Como já foi referido, paz inquieta, o sossego desassogado, a matriz de um mundo a descobrir que lhe entrava quotidianamente olhos adentro ocuparam o seu imaginário durante esses três anos em Moçambique. Como se fosse mastigando, comendo, e digerindo até sentir que era altura de pôr cá fora tudo o que lhe ia na alma: algumas músicas vêm sobretudo das minhas quase reminiscências daquilo que vivi em África.

São esses ritmos, essas harmonias, alguns dos sons desses instrumentos da África negra que se foram acumulando no seu subconsciente e irão habitar algumas das suas canções futuras.

Alguns exemplos:

– “Avenida de Angola” (Traz outro Amigo Também / 1970). Avenida de Angola era a principal Avenida de Maputo, Moçambique. Canção sobre a prostituição naquela época para consumo dos colonizadores brancos. Diz José Afonso: há sempre um botão de punho / Num braço de fora preto;

Em “Carta a Miguel Djéje” (Traz Outro Amigo Também / 1970) Zeca canta a Miguel de quem não se sabe o paradeiro em todo o Xipamanine, então bairro de Maputo, Moçambique para que este cante também. Quando Miguel Djéje cantava todos dançavam e havia marimba (instrumento de percussão) e um idiofone (tipo xilofone, de origem africana);

– Em “Ailé, Ailé” (Coro dos Tribunais / 1974, mas todo escrito antes do 25 de Abril) sentimo-nos debaixo dos embondeiros que nos acolhem como se fossem os pais e as mães de toda a terra;

– “Lá no Xepangara” (Coro dos Tribunais / 1974) sobre o percurso de um menino em Moçambique: Lá no Xepangara vai nascer menino dentro da palhota…se morrer de fome tapa-se com um pano (…).

De facto, João Afonso dos Santos (irmão de José Afonso) tinha razão quando escreveu em “Um Olhar Fraterno”: Influências? As africanas subsistem teimosamente até ao último disco.

Na verdade, ao escutarmos “Galinhas do Mato” do disco com o mesmo nome (1985), somos transportados, mais uma vez, para a beleza e mistério dos embondeiros como se uma dança esquisita nos colocasse, nus e despojados, perante o mistério da vida. Trata-se de uma música sem letra apenas com um tipo determinado de vocalizos. Por exemplo, “Agora”, canção do mesmo álbum, é marcada por uma sonoridade africana, utilizando instrumentos de percussão e o saxofone.

Uma nota curiosa que se irá estender também à Galiza: apesar da clara influência africana na sua criação, José Afonso – que no conjunto da sua obra “usa” cerca de 40% de palavras de outros ou de recolha popular – não musica nenhum texto de poetas dessa região do mundo.

Há uma incursão por António Quadros (Pintor) com quem fez amizade em Moçambique, nos álbuns “Cantares do Andarilho” / 1968 (Cantares do Andarilho), “Cantigas do Maio” / 1971 (Ronda das Mafarricas), “Eu vou ser como a Toupeira” /1972 (Sete Fadas me Fadaram) e “Enquanto há Força” /1978 (Eu o Povo) aqui com o pseudónimo de Mutimati Barnabé João. António Quadros que assinou poesia com o pseudónimo de João Pedro Grabato Dias, nascido em Viseu, foi para Moçambique leccionar nos anos sessenta.

Depois de diversas vicissitudes em Moçambique em que também estiveram presentes questões de repressão política José Afonso regressa em 1967 a Portugal.

Em 1968 constrói o álbum “Cantares do Andarilho” onde começa a antecipar, com substância ideológica, o que viriam a ser todas as aquisições da vida percorrida.

PORTUGAL. É o início do segundo vértice do seu triângulo mágico.

José Afonso, fruto de ambientes familiares, estudantis, profissionais e artísticos correu este país de lés-a-lés. De forma arbitrária e a mero título de exemplo: Belmonte, Aveiro, Coimbra, Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro, Alcobaça, Setúbal, Beira Baixa, Trás-os-Montes para além das múltiplas localidades por onde andou de viola às costas em acções solidárias.

As experiências vividas nas diversas regiões de Portugal por onde foi passando e a síntese com a experiência em África apresentam-nos um José Afonso multifacetado, inquieto, permanentemente à procura de materializar tudo que ia aprendendo.

Por isso, a par da criatividade para escrever e compor em nome próprio entra, por exemplo, pelo Cancioneiro Popular das Beiras: “Senhora do Almortão” e “Resineiro Engraçado” (Cantares do Andarilho/1968), “Oh! Que Calma Vai Caindo” (Contos Velhos Rumos Novos/1969), “Maria Faia” e “Moda do Entrudo” (Traz Outro Amigo também/1970) provavelmente por alguma influência do seu amigo Michel Giacometti.

Talvez derivado dos seus contactos com estudantes açorianos nas Repúblicas de Coimbra embrenha-se no Cancioneiro dos Açores de que “Canção Longe” e “Os Bravos” (Baladas e Canções/1964), “Saudadinha” (Cantares do Andarilho/1968) ou “S. Macaio” (Contos Velhos Rumos Novos/1969) são referências.

A sua busca por novas palavras e por sons diferentes faz navegar José Afonso pela cultura popular de múltiplas regiões do país: “Deus te Salve, Rosa”, Trás-os-Montes (Contos Velhos Rumos Novos/1969), “Milho Verde” (Cantigas do Maio /1971), “As Sete Mulheres do Minho” (Fura Fura/1979,” Vira de Coimbra” (Fados de Coimbra e Outras Canções/1981),” Altos Altentes” (Como se Fora seu Filho/1983) entre muitas outras canções.

Sempre desassogado e desalinhado passa pela expressão surrealista e assume que as palavras vêm à superfície desligadas de qualquer lógica e assim as vou arrumando.

Chamaram-me Cigano” (Cantares do Andarilho/1968) ou “Era um Redondo Vocábulo” (Venham Mais Cinco/1973) poderão ser alguns desses exemplos.

O abraçar de várias fases e temáticas, o contínuo contacto com a realidade da guerra colonial e dos seus cambiantes leva José Afonso a assumir a sua denúncia com “Menina dos Olhos Tristes” (Single editado em 1969. Nota: o poema é de Reinaldo Ferreira (filho) que morreu em Junho de 1959, dois anos antes do início da guerra colonial, mas premonitório).

O fascismo, a repressão, as prisões políticas, a tortura, os assassinatos passam a ser uma constante no seu processo criativo seguramente também, pelos casos concretos de que ia tendo conhecimento. “A Morte Saiu à Rua” dedicada ao pintor e militante comunista José Dias Coelho e “Por Trás Daquela Janela” dedicada ao também militante comunista Alfredo Matos (Eu Vou ser como a Toupeira/1972), “Era de Noite e Levaram” (Contos Velhos Rumos Novos/1969) ou o icónico “Cantar Alentejano” (Cantigas do Maio/1971) constituem paradigmas das preocupações de José Afonso.

Assim como, “Na Rua António Maria” dedicada à presa política e militante comunista Conceição Matos, cantada em Paris em Novembro de 1970 e que não consta de qualquer edição discográfica.

Portugal é, por assim dizer, o fiel depositário de toda a sua raiva e amargura perante o odioso de um regime odioso, feio e ameaçante.

GALIZA. O último vértice começa a surgir em Fevereiro de 1972 por um acaso na vida de Benedicto García Villar. Benedicto, um dos fundadores do grupo “Voces Ceibes” (ceibes= livres, em galego) que existiu entre 1969 e 1974 com vasta lista de canções, poemas e actuações públicas antifranquistas teve acesso por intermédio de um amigo ao álbum “Traz Outro Amigo Também” /1970.

Metendo os pés ao caminho, com paragem na Editora Orfeu de Arnaldo Trindade, Porto, segue para Setúbal ao encontro daquele tipo estraño cuja audición , diz Benedicto, foi coma se me rebentasen a cabeza.

A cumplicidade foi tal que o álbum “Eu Vou Ser Como a Toupeira” /1972, gravado em Madrid em Novembro desse ano conta com a participação musical do cantor das “Voces Ceibes”, entre outros músicos galegos e portugueses.

Mas a entrada de José Afonso no mundo galego contou com mais actores.

Francisco Peña Villar, Xico de Carinho – estava em Paris nos inícios dos anos setenta – foi apresentado a José Afonso por Bebiano (integrante do “Voces Ceibes”) no concerto já referido de Novembro de 1970. A amizade levou a que desde cedo Xico de Carinho começasse a levar o “andarilho, poeta e cantor” por terras galegas tocando com ele e acompanhando-o em Azeitão na fase de doença.

Se no primeiro contacto com Benedicto José Afonso lhe perguntava, E vocês são mesmo galegos da Galiza? E fala-se mesmo assim, lá acima? a partir das experiências vindouras há a aquisição de um novo patamar no âmbito da compreensão política com dimensão internacionalista.

Há unha grande confuson em Portugal sobre a Galiza: estou farto de explicar por todo o lugar que Galiza nom é Espanha, que é um país diferente, com unha cultura própria dizia em Abril de 1985, José Afonso ao semanário galego “A Nosa Terra” acrescentando depois que a Galiza é para mim uma espécie de pátria espiritual. Foi uma experiência maravilhosa. Algo de especial. Talvez ninguém me tenha entendido tão bem como a Galiza.

José Afonso desde cedo entendeu que as margens do rio Minho não separavam povos mas sim factor de união. Foi, de facto, um percursor de uma rede de “galilusofonia”.

Do tempo adiante a história é mais ou menos conhecida. Várias “giras” pela Galiza: Ourense – primeira cidade galega a receber José Afonso em 9 de Maio de 1972 – Compostela no “comedor” da Faculdade de Ciências Económicas, 10 de Maio do mesmo ano. No antigo Burgo da Naçons, “Grândola” é cantada pela primeira vez. Trinta e sete anos depois o antigo Burgo da Naçons passa a designar-se Parque José Afonso nascido do projecto “Unha Rua para José Afonso” mais uma vez impulsionado por Benedicto e outros amigos galegos.

A vontade de ser livre era tanta que o “homem de óculos grandes e olhar distraído” sofria grande inspiração na Galiza, como se fosse em sua casa.

Na cozinha de Benedicto compõe um tema que ficaria inédito (Bombom de todos os Dias) até ser gravado pelo sobrinho, João Afonso, no álbum “Outra Vida” de 2006. Numa viagem de Compostela para Paris, antes do 25 de Abril, conta Benedicto, nasce “O Que Faz Falta” incluída no álbum “Coro dos Tribunais” editado no inverno de 1974.Em 1977 participa no Festival dos Povos Ibéricos, Corunha, levado por Xico de Carinho. Em 1980, com Júlio Pereira, Sérgio Mestre e Janita Salomé faz nova digressão por cidades galegas.

José Afonso tinha razões para se sentir irmão da Galiza.

Em 31 de Agosto de 1985, no Parque dos Castrelos, Vigo, com 12 horas de música e saudade “Galiza a José Afonso” celebrou a sua vida e obra com esta mensagem recebida: Aproveito esta oportunidade para uma vez mais afirmar a minha grande amizade pela terra e o povo galegos, com que ao longo dos anos mantive as melhores relações, e para manifestar também a minha inteira solidariedade com a luta pelo reconhecimento efectivo da língua e cultura galegas como uma das mais ricas da península.

Entre 19 e 23 de Maio de 1987, pouco tempo depois do desaparecimento físico de José Afonso, Benedicto, Xoán Gutián e Arturo Reguera organizaram em várias cidades galegas a iniciativa “Enquanto há Força”.

A 8 de Maio de 1997, no Auditório Galiza, com a participação de Gutián e Benedicto, celebrar-se-iam os vinte e cinco anos da “Grândola” cantada no Burgo das Naçons.

E muitas mais celebrações vieram, e vêm, a realizar-se, nomeadamente pela altura do 25 de Abril.

À semelhança do referido quanto à sua passagem por África, José Afonso que lidou e contactou com vários sectores das arte e cultura galegas, não musicou nenhum dos poetas de referência dessa região do estado espanhol o que não significa que não tenha aí absorvido influências.

É verdade que musicou “Bailia” (Contos Velhos Rumos Novos/1969), portanto ainda antes de conhecer a Galiza, cujo poema é de Airas Nunes um clérigo de origem galega do século treze.

Só em 1979 José Afonso a partir de uma letra popular galega grava “Achegate a mim Maruxa” (Fura Fura/1979) composta, segundo Júlio Pereira, de forma repentina numa rua de Vigo.

José Afonso foi quem foi – artista, poeta, cantor, andarilho e cidadão – não porque o destino lhe tenha sido traçado, mas sim porque soube ouvir, ler, recolher, beber, absorver, no fundo recriar, todo o caldo de cultura e de experiências que a vida lhe foi proporcionando.

José Afonso nunca teria sido quem foi se tivesse vivido sozinho e por isso o seu triângulo mágico constituiu uma inquieta e permanente bússola que o orientou, até 23 de Fevereiro de 1987, para esse lugar intemporal de génio da palavra e da música.

Fontes: www.aja.pt / Livra-te do Medo, J.A. Salvador / “Sonata de Amigos, Benedicto Garcia Villar / documentação dispersa pela “Internet” / depoimentos orais.

NOTA: este texto é um resumo do caderno a publicar pelo “Centro de Música Tradicional Sons da Terra” integrado na colecção “Os Nossos Cantores”.

Paulo Esperança

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