Pode ter acontecido assim

A primeira vez que ouvi o nome de Mário Barradas foi em Abril ou Maio de 1971.

Ia na minha terceira inscrição na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tinha passado pelo Cénico de Direito (em 1967/68, experiências com Luís de Lima e Fernando Gusmão interrompidas pela censura/PIDE, depois, em 1968/69, uma experiência levada até ao fim com Adolfo Gutkin: Volpone), tinha feito uma estadia de um Inverno inteiro em Paris a apalpar terreno em 1969/70, e fazia agora a experiência de trabalhar como actor no Grupo de Acção Teatral de Artur Ramos e Luiz Francisco Rebello, e tinha-me candidatado a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para ir estudar teatro na Escola do Teatro Nacional de Estrasburgo, decisão tomada durante o Inverno parisiense.

Fernando Gusmão, 1919-2002
Artur Ramos,1926-2006 Adolfo Gutkin 1936 Robert Gironès

Teatro Villaret, Abril ou Maio de 1971, ensaios de A Capital de Eça de Queiroz, Artur Ramos e Artur Portela-Filho. Chega-se ao pé de mim a Glicínia Quartin: «Ouve. Telefonou-me de Estrasburgo o Mário Barradas a pedir a minha opinião sobre ti. O que é que lhe digo?» Terei perguntado quem era o Barradas e a Glicínia há-de ter-me dado as explicações suficientes. Com a imensa gentileza dela, disse-me que ia dizer ao Mário qualquer coisa como que eu era boa gente. A verdade é que tive a bolsa da Fundação e fui admitido na Escola.

No dia 1 de Outubro de 1971 entrei no edifício do teatro. Ao cimo das escadas, no patamar do primeiro piso, estava o Mário à minha espera. Apresentações breves, acolhimento caloroso e, logo ali, ele a servir-me de guia: primeiro, o chefe de secretaria, o administrador do teatro e a subida ao segundo piso para conhecer a Paulette, preciosa secretária da Escola. A urgência era tratar das burocracias e integrar-me depressa.

Segunda-feira, dia 4, reunião de arranque do ano lectivo e acolhimento do grupo XIV, o meu grupo, na sala de dança da Escola. Todos presentes: grupo XIII, que estava no seu terceiro e último ano, nós, os novos, e a equipa docente da Escola. Foi ali que fiquei a saber que o Mário não era aluno: naquela equipa, ele era professor, juntamente com Pierre-Etienne Heymann, o director da Escola, Maurice Regnaut e Ginette Herry da Universidade de Estrasburgo, Robert Gironès, jovem encenador vindo do Grupo XII da Escola… nomes que me acompanhariam durante muitos anos depois.

O Senhor Puntila e o seu Criado Matti,1975 fotografia de Paulo Nuno Silva

Nem mais. O advogado vindo de Moçambique, animador do Teatro Amador de Lourenço Marques e do Teatro dos Estudantes da Universidade de Moçambique, Mário Barradas estava no seu terceiro ano de estadia em Estrasburgo, não já na condição de aluno, mas de professor, num colectivo que se propunha pôr em prática um modelo de formação de certo modo em ruptura com a tradição confirmada do TNS que trazia a marca de Hubert Gignoux, o histórico director da companhia, e Pierre Lefèvre, seu colaborador e director da escola.

Na primeira ocasião, ainda em Outubro, almocei em casa do Mário. Morava ele no Quai Koch, à beira do Ill, com a Joana, os três filhos e a Mãe, Senhora D. Almerinda. Recordo-me de um primeiro andar cheio de sol com o Rui, o Miguel e o Nuno aos saltos embrulhados numa clássica batalha de almofadas num quarto todo branco. Saí de casa deles nesse dia com um exemplar de Théâtre réel de Bernard Dort que me passou. Foi das minhas primeiras leituras metódicas de Estrasburgo junto com as releituras de L’Achat du cuivre e de La formation de l’acteur, tradução francesa de An Actor prepares de Stanislavski com prefácio de Vilar (ambos espólio de Paris 69/70).

O meu primeiro ano de escola foi o último de presença do Mário em Estrasburgo. Vi-o em acção como pedagogo envolvido em ateliers como Live like pigs de John Arden, o nosso primeiro trabalho na escola, ou como A Maravilhosa história de Cabeza de Vaca, de Haniel Long, em permanente reflexão sobre o ensino e a encenação. Mas, sobretudo, vi-o a preparar o seu regresso a Portugal, onde já o esperava o desafio da reforma “Perdigão”: com o cenógrafo Christian Rätz, entre o teatro e a Taverne Française ali ao lado, na preparação de da cenografia de Puntila/Matti, de Troilus e Cressida, de um qualquer Marivaux (O Legado? O preconceito vencido?), com Regnaut sobre Brecht e o teatro épico, com Ginette sobre o teatro clássico italiano…

Despedimo-nos em Estrasburgo em Maio ou Junho de 1972 com a promessa, o voto, de que havíamos de nos reencontrar em Portugal quando eu acabasse a Escola. (E a guerra?, perguntava-me eu.)

Acabei a Escola em Julho de 1974, três meses depois do 25 de Abril de 1974.

A 2 de Janeiro de 1975 começámos a trabalhar no Teatro Garcia de Resende, em Évora: era o Centro Cultural de Évora, feito, tanto quanto fomos capazes e tanto quanto fazia sentido, à imagem da Décentralisation e do Teatro Nacional de Estrasburgo.

A 26 de Novembro de 1975, às 9,30h, começaram os trabalhos do Grupo I da Escola de Formação Teatral do Centro Cultural de Évora, feita, tanto quanto fomos capazes, à imagem da Escola do TNS.

Pode ter acontecido assim.

Évora, dia 1 de Novembro de 2020

Luís Varela

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