Mário Barradas e o Teatro

Mário Barradas, é para mim o profissional que maior contributo deu para a transformação da realidade do teatro português nos últimos 50 anos, que tive a sorte de ter como Amigo, com quem trabalhei e partilhei projectos, com quem convivi como irmão e que foi sem dúvida meu Mestre desde que o conheci.

Ouço dizer com frequência que não há ninguém insubstituível.

Talvez seja verdade, mas não partilho essa opinião.

Já sou velho suficiente para poder dizer que há pessoas que marcam os projectos em que estão envolvidas, e sem elas, os projectos, o mundo, a vida, continuam, é certo, mas não são a mesma coisa. Passa o tempo e esperamos longamente que outras dinâmicas surjam, que se descubram outras vias, ficando os lugares vazios durante muito tempo.

Mario Barradas, Puntilla,1975

A mim fazem-me falta. Fazem-me falta porque eram meus amigos, mas também porque sabiam coisas que eu não sei, tinham experiências que eu não tenho e me ajudaram muitas vezes a encontrar caminhos e soluções e eram sempre apoios, energia e esperança para ultrapassarmos as dificuldades que iam surgindo no caminho do teatro.

Muitos dos meus projectos ou das minhas realizações continuam marcados pela presença deles. Embora já não estejam connosco as suas obras continuam a oferecer material de reflexão e energia para o combate que é preciso continuar.

Sei que quando falo do Mário quase sempre falo da influência que ele teve em mim ou de como ele abriu caminhos ou perspectivas que me levaram ao que hoje sou e faço. E por isso peço desculpa de me misturar por vezes nos projectos que eram dele.

No ano lectivo de 64/65 ajudei a fundar um grupo de teatro na Faculdade de Ciências de Lisboa. Escrevemos a muita gente dando conta da nossa existência, tentando estabelecer contactos.

Descobrimos que em Moçambique, na então Lourenço Marques, havia um grupo – Teatro Amador de Lourenço Marques- TALM- que me ficou na memória por reenviar a essa figura mítica –Talma- que na altura nós jovens que se iniciavam no Teatro, não sabíamos muito bem se era artista ou divindade.

Preso nas “ teias que o império tece” em 1966 fui parar também a Moçambique e antes do fim do ano estava em Lourenço Marques.

As Duas Caras do Patrão, encenação Luís Varela

Aí fui procurar o TALM que ainda não tinha esquecido e que segundo me pareceu toda a gente conhecia e do qual me falavam com entusiasmo pela importância da sua acção cultural, não só na cidade mas em todo o território do sul, aonde se podia ainda ir e por onde o Grupo fazia a sua itinerância.

Nesse tempo a acção cultural ou mais claramente a criação teatral era uma forma de resistência ao fascismo e alternativa à acção política que só clandestinamente era possível ter. Assim muita gente se juntava à volta desses núcleos numa espécie de militância sociocultural que nos fazia estar vivos e comungando ideais que se opunham ao regime ditatorial que nos sufocava.

O primeiro contacto que tive com o TALM e com o seu dinâmico director e encenador foi através da Dra. Ana Maria Branquinho, Professora de dia e Actriz à noite, que me convidou para assistir no Teatro Avenida à exibição de O que diz que sim e o que diz que não de Brecht esse autor maldito, proibido na metrópole, e não fui capaz de imaginar como tinha sido possível levar a cena na colónia.

O que vi impressionou-me. Guardo ainda hoje uma memória viva do que então me mostravam. Aquele tipo de teatro ou aquela estética eram para mim uma novidade surpreendente, que me marcava fortemente e à qual aderia sem hesitação.

Para mim tornou-se claro que o teatro que regularmente via na metrópole, salvo raras excepções, era de uma esgotada convenção ou era a tentativa empolgada de agitação e propaganda.

O que então o TALM me mostrava, era o teatro da calma reflexão, da depuração da cena e do prazer de pensar. Provavelmente seria a ortodoxia brechtiana e provavelmente vinha nos livros, mas para mim que não tinha os livros e era a primeira vez que o via, era uma vigorosa e lúcida mudança.

Depois também no espectáculo nem tudo estava dito e ficava-nos o prazer de descobrir o outro sentido daquilo que nos estavam ardilosamente a dizer.

Espantou-me que aquela “periferia” tivesse dado passos que o “centro” não dera.

A seguir ao espectáculo conheci o Mário. Descobri que era açoriano como eu e tinha casa na rua paralela àquela em que eu habitara durante algum tempo em Ponta Delgada. Nunca nos tínhamos visto, mas a paixão que ele punha em tudo o que fazia ou de que falava era galvanizante e mobilizador e foi fácil tornar-me seu amigo.

Encontrávamo-nos na Pero de Alenquer onde o Grupo ensaiava, no Café Continental onde ele encontrava os amigos e na casa dele onde passávamos longas horas a conversar.

Descobri que tinha uma óptima biblioteca que comecei a explorar logo que a vi. Tinha uma colecção de discos com actores ingleses a dizerem Shakespeare, que eu ouvia fascinado, com o original inglês na mão esquerda e a tradução na mão direita e ouvia-os tanta vez que ainda hoje, ao fim da noite de trabalho, chega-me, como eles dizem, a hora shakespeareana e massacro os ouvidos dos meus colegas com tiradas de Macbeth, Hamlet ou Júlio César.

O Mário tinha a paixão dos Clássicos, mas fazia Albee, O’Casey ou Ghelderode, estando sempre atento ao que se chamava na altura os modernos, não deixando de levar a cena um teatro de raíz popular como o de Lorca ou Benavente, procurando uma via para a conquista de um público que não era ainda o do teatro.

Mário Barradas em Eu Feuerbach, de Tankred Dorst,
encenação de Fernando Mora Ramos, fotografia de Paulo Nuno Silva

Para ele antes de tudo estava o texto ou o autor como o grande criador do teatro, sabendo que todos os outros, actores ou encenadores, não eram mais do que intérpretes.

A qualidade poética ou literária eram, nessa altura, os critérios de escolha de um repertório, a que se juntavam razões políticas e sociais e outras que o tempo foi trazendo.

Discutíamos animadamente porque apesar da minha pouca cultura, eu tinha a ousadia da juventude e a mania de ter opinião.

O Mário condescendente aceitava. Ou fazia que aceitava. Mas creio que nunca me perdoou quando o obriguei a fazer as novidades publicadas pela Casa das Américas que eram grandes sucessos na capital do império. Foi a única vez que gritou comigo e me disse – Isto é estúpido!

O Mário lia com reverência os grandes nomes do teatro francês, os escritos dos grandes encenadores e seguia-lhes os passos na estética e na ética.

Um dia o advogado de sucesso que podia ter feito a grande fortuna tomou uma decisão. Não sei quanto tempo levou a tomá-la em silêncio, mas quando a anunciou levou apenas poucos dias a concretizá-la. O tempo de passar as pastas a outros advogados e a organizar a viagem para ele e para a família até Strasbourg, cidade onde havia uma Escola associada a um Teatro célebre em todo o mundo, que não era a feira teatral que ele sempre abominara e estava a meio caminho entre a França e a Alemanha, encruzilhada de duas culturas que ele apreciava, podendo ainda facilmente descer até Itália que ele sempre levara em conta.

Alguns amigos ficaram com os processos. Eu fiquei com a biblioteca e com os discos. Uns não disseram nada porque não conseguiam fechar a boca de espanto, outros disseram que ele era doido e outros compreenderam como o poeta que ” o sonho comanda a vida”.

Mas mesmo antes de Strasbourg o Mário era já um criador autónomo e original. Strasbourg foi o tempo de ordenar ideias, pesquisar novas pistas para o teatro, somar informação, estabelecer relações com outras estéticas e outros processos de trabalho. Na Escola é-lhe reconhecido o talento, a cultura, a capacidade de trabalho e logo no segundo ano é-lhe atribuído o estatuto de docente associado, forma de beneficiar das suas capacidades contornando a lei.

Quando o Mário voltou já não era o mesmo. Tinha deixado provisoriamente Stanislavski num lugar respeitável, mas recatado, sabendo que com ele se tem a credibilidade que as personagens precisam para se tornarem reais, mas o novo rumo era Brecht.

Os exercícios que nos propunha para a nossa formação eram algo novo, nada tinham a ver com os anteriores.

. Os textos sobre os quais trabalhávamos eram de outra natureza. Eram como os exercícios para aprender a ler da Mãe de Gorki/Brecht. Eram comprometidos com uma realidade social, vislumbravam uma estética e um projecto político. Tudo tinha um sentido explicável e nada era por acaso. Não havia projectos teatrais neutros, nem técnicas não comprometidas. A formação do actor vislumbrava claramente uma estética teatral, mas também uma função social para o teatro.

Trabalhámos Noite de Guerra no Museu do Prado que para nós foi uma revelação formal e o Medida por Medida que levámos a cena era de outro Shakespeare, o que tinha lido os “Escritos” de Brecht.

E quando nós jovens estudantes entusiasmados declarávamos aos jornais locais que queríamos fazer um teatro político, o Mário acrescentava com a astúcia brechtiana, que era para a Polis que queríamos trabalhar, como na Grécia antiga e esse era o sentido do político. Era a mesma astúcia que tinha dito anos antes que ” O que diz que sim…” era uma peça didáctica, ou seja, uma peça para crianças. E a censura acreditou.

E enquanto o Mário voltava a Strasbourg nós lá ficávamos a fazer Ruzante enquanto aguardávamos a vez de fazer Woyzeck e outros “modelos” que nasciam quase todos nos clássicos.

Para nós era o fim de uma caminhada e o início de outra. Era o que se chama o virar de uma página. E a estética didáctica de “O que diz que sim” também já estava longe.

Mas surgiu um novo imperativo, o início da reforma do ensino das artes programada por Madalena Perdigão que constituiu de facto o mais radical e incomparável impulso transformador das práticas artísticas no país e o Mário era indispensável para esse projecto no domínio do teatro.

Lembro-me da minha desilusão e do sentimento de abandono de todos nós, os discípulos de Lourenço Marques.

Mas lembro-me também dos Marivaux da Escola do Conservatório, que já eram de outro teatro, de uma escrita cénica rigorosa e demonstrativa, onde à palavra se juntava uma outra forma paralela de comunicar, que era a dos actores que não eram apenas o suporte da palavra e como esse jogo acrescentava compreensão ao que ouvíamos.

Lembro-me do grande sucesso dos Bonecreiros com A Moscheta, com deslumbrantes interpretações e que era ainda um passo mais à frente na busca de um teatro popular, com uma leitura política subtil, que iludia a censura que não sabia bem como a proibir e por isso só proibiu o cartaz.

Não poderei esquecer nunca o grande sucesso de A Grande Imprecação Diante das Muralhas da Cidade, esse grito de revolta que parecia a voz de todo um povo que se unia e anunciava o 25 de Abril que não tardava e constituía do ponto de vista formal mais um salto em frente na procura de uma nova estética.

Depois da Revolução veio A Noite de Guerra no Museu do Prado, com a sua revisitação de fantasmas, fechar de contas com o passado, com os olhos postos no futuro.

Mas com o 25 de Abril uma nova e urgente tarefa impôs-se ao Mário – a Descentralização Teatral – sonho que acalentava havia muitos anos, cujo modelo tinha já estudado e discutido e guardado, esperando o momento de o pôr em prática. E esse momento chegara com Abril e o Mário vai para Évora implantar o primeiro Centro Dramático, que por razões de estratégia nasceu com a designação de Centro Cultural.

Com ele vai uma jovem equipa cheia de vontade de fazer coisas e com a convicção que o teatro é o melhor, o mais sábio, o mais eficaz e gratificante contributo para mudar o mundo. Era essa a nossa missão – mudar o mundo.

Vivíamos um tempo em que fazer teatro era mister sagrado, em que todos nós éramos oficiantes de um ritual que nos exigia saber, mestria, dignidade, desprendimento dos interesses materiais e nos trazia a sensação de tranquilidade, por fazermos aquilo que devia ser feito. Não havia desânimo, mas sim alegria de viver, não havia cansaço, mas sim confiança no futuro. Sonhávamos uma nova sociedade que queríamos construir e o Mário era a energia, a força da convicção que alimentava a caminhada para essa nova realidade.

E dizia-nos:

– que fazer Teatro era uma profissão muito digna que nada tinha a ver com o comércio da figura ao serviço de bens de consumo,

– que assumir uma atitude ou um discurso diante de um público nos acarreta uma grande responsabilidade social e que só podemos oferecer aos outros aquilo em que nós próprios acreditamos convictamente,

– e que não podíamos ter um discurso para os outros e uma prática privada negando o que afirmávamos em cena,

– e que o Teatro não servia para nada se não servisse para mudar o mundo e não nos tornasse pessoas mais lúcidas, mais responsáveis, mais dignas e mais nobres nos comportamentos, nos sentimentos e nas opções dos caminhos a percorrer na vida.

E olhava a realidade nos olhos, sem ilusões e sem fantasias e sabia as dificuldades que tinha que enfrentar.

E por isso surge A Noite de 28 de Setembro e Puntila/ Matti, em plena reforma agrária.

E se cria a Escola junto do Centro Dramático para formar actores e técnicos que darão corpo à Descentralização e tentam implantar no terreno o grande sonho do Mário – uma rede Teatros de Serviço Público, conceito que ele nunca se cansou de defender e renovar.

E havia um fervor quase místico em criar essas unidades, quase uma réplica dos mosteiros medievais ligados por fortes laços à Abadia ou casa mãe.

E cria a ATADT – Associação Técnica e Artística da Descentralização Tearal, forma de unir ou conjugar esforços para operar esse grande sonho de democratização da cultura através desse instrumento essencial que é o teatro.

Mas quando foi preciso suspendeu a sua actividade de criador teatral, que certamente lhe dava muito mais prazer, para pagar o tributo ao Ministério da Cultura, e por dentro poder dialogar e influenciar, para que as decisões políticas fossem tomadas no reconhecimento desses valores e da prática que no terreno se esforçava por concretizar.

Convictamente afirmo que Mário Barradas foi a figura mais dinâmica e empenhada na transformação do panorama teatral português e por isso quero manifestar aqui todo o meu reconhecimento.

A mim legou-me o prazer de pensar durante o espectáculo. E levar para casa um pouco mais para pensar depois. E ainda ter daí a seis meses a memória de uma inquietação que o espectáculo produziu. E a consciência de que os problemas das sociedades ou os nossos privados, não se resolvem dentro das salas de teatro, embora os teatros sejam o grande forum de tomada de consciência social; e que os teatros que os resolvem na cena prestam um mau serviço à sociedade, pois deixam o espectador ir para casa dormir tranquilamente e deixam a sociedade da injustiça, da desigualdade e da corrupção seguir tranquila sem oposição a sua marcha de desumanidade.

E hoje a Homenagem que lhe posso prestar é tentar continuar a lutar pelo teatro e com o teatro por um mundo de justiça social, de fraternidade, de tolerância e partilha, um mundo onde valha a pena viver, sobretudo hoje em que as forças da exploração do homem desencadearam mais uma grande ofensiva e há gente empenhada em acabar de vez com o teatro.

E em privado, pelos autores que me revelou, pelas vias que me sugeriu, pela disponibilidade em me ajudar a saber alguma coisa de teatro, para a minha liberdade e autonomia para seguir o meu próprio caminho, pelos gestos de amizade, pela família que nós éramos, por tudo isso, meu Amigo e meu Mestre, manifesto a minha gratidão.

José Peixoto

Receber informações

Deixe-nos o seu e-mail para receber avisos sobre a publicação de novos artigos ou outras informações.