Olhar de Budapest: São putos a jogar à bola. São só putos a jogar à bola.

Olhar de Budapest

São putos a jogar à bola. São só putos a jogar à bola

Recentemente fez algum furor em Budapest, em pleno Euro 2020, um musical sobre o Ferenc Puskás, que procurava seguir os passos da sua geração dourada que no início dos anos 50 maravilhou o mundo do futebol. O musical seguia, com cuidado e atenção, os principais momentos deste bando de garotos, desde quando descalços jogavam nas ruas da Budapest dos anos 30 até ao célebre Milagre de Berna, a final do Mundial de 1954 perdida pelos magos-magiares para a então Alemanha Ocidental, passando pela medalha recebida do topo do pódio Olímpico de Helsínquia em 1952, pelo Match of the Century (6-3 em Wembley) e pelos 7-1 em Budapest, ambos resultados históricos contra os ingleses.

Uma das curiosidades deste trabalho de palco, apoiado por entidades pró-governamentais e criteriosamente assente em vasta investigação histórica, foi a atenção dedicada ao cruzamento entre a política e o desporto, neste caso o futebol. E nomeadamente a trama decorrente do encontro na Suíça, marcante para criação da identidade de uma nova Alemanha, mas devastadora para muitos dos colegas de Puskas, acusados pelo poder sovietizado – habituado que estava este a cavalgar as façanhas desportivas destes mágicos da bola – de venderem a partida ao adversário, e assim humilharem a Nação.

Antes ainda da Revolução de Outubro de 56 dar a machadada final nesta equipa d’Ouro, acrescentando muitos destes jovens e suas famílias às centenas de milhar de húngaros forçados ao exilio depois da invasão soviética de Budapest, razões político-ideológicas forjadas e impostas por um regime iliberal dizimaram uma geração que rejeitou viver num país sob um autoritarismo de Estado, sem liberdades ou qualquer tipo de autonomia individual. Sem vergonha, retracta então muito bem o musical este grito por liberdade, como aliás sem vergonha tem procurado fazer este governo húngaro a apropriação de cada 23 de Outubro, data-feriado do início desta revolução, de forma a condizer com a meta-narrativa produzida para apresentar, e encaixar, o próprio Viktor Orbán na linha directa dos bardos pela liberdade frequentemente produzidos em terras magiares nos últimos 150 ano, de Petőfi Sándor (nascido Alexander Petrovič) a Miklós Horthy, de Ferenc Puskás a Imre Nagy, como aliás bem demonstrado em toda a linha interpretativa desenhada na Terror Háza (Casa do Terror), Museu sedeado na antiga sede da ÁVH, a PIDE local, que termina a sua exposição com o célebre discurso «Russos vão para casa» de um então liberal líder estudantil Viktor Orbán, proferido em 1989, durante o reenterro simbólico da grande figura de ’56 (Imre Nagy).

Não podemos, portanto, deixar de identificar a ironia deste espectáculo ter estado em cena estes dias, com alto patrocínio, no justo momento em que despoletou na Hungria nova polémica sobre a continua discriminação em torno das comunidades LGBTI, quando o Parlamento Húngaro aprovou uma lei desancando ainda mais nesta já tão batida comunidade, agora proibindo a exposição de menores de 18 anos a quaisquer materiais ou conteúdos considerados LGBTI friendly, ou seja, menores não poderão ver muita da publicidade cool e trendy hoje produzida por qualquer estilista que se preze, metade do catálogo da Netflix ou dos nomeados dos Óscares. Tudo em prol do direito das crianças, dizem, e das famílias poderem educar os seus filhos a seu belo prazer, segundo palavras da ministra da Justiça húngara, Judit Varga, assim defendendo o Sistema de Cooperação Nacional (NER), projecto de doutrinação completo e de alcance total em acção há um bom par de anos, cuja ideologia subentende uma Hungria húngara, de sólida base cristã, de núcleo familiar heterossexual, indisputável e iliberal; linha aliás defendida por Orbán quando recentemente afirmou que «se queremos manter a União Europeia, os liberais devem respeitar os direitos dos iliberais», acrescentando, da mesma forma jocosa com que os sovietizados húngaros faziam ao clamar pela defesa dos seus valores, que defendia os direitos das pessoas LGBT como ninguém.

Mas a realidade é que, mesmo sem tanques à porta, hoje centenas de milhar novamente se exiliam se ausentam por aqui não conseguirem viver as vidas como e com quem desejam, apenas porque um Estado lhes diz que não o podem fazer livremente, sejam pessoas académicas, liberais, LGBT ou apenas quem deseje sentir verdadeiramente os ares da liberdade. O mundo iliberal defendido pelo bardo local, confundido como um grito de liberdade pelos seus defensores, mais não é que uma versão redux de tantas outras infelizes tentativas de algemar uma população em torno de uma visão monista, não contestada, sem espaço de oposição (pois o mesmo seria considerado como anti-nacional), de uma realidade construída de forma deturpada para encaixar na tal União Nacional de sotaque próprio. Tudo pela Nação. Nada contra a Nação, apraz-se dizer, capando-se a magia, que se escapa, a ciência, que se exila, e a liberdade, que se esvazia. Isto quando os putos, os novos Puskás, cientistas ou poetas, só querem mesmo sentir as mesmas brisas que os catraios descalços sentem a jogar à bola.

AUTOR DO ARTIGO

JOSÉ REIS SANTOS

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