João Apolinário, Rascunhos da Memória

Parece coisa do destino, se destino houver, escapar da ditadura salazarista em Portugal e cair na ditadura dos generais no Brasil!

Foi o que se deu.

Em dezembro de 1963, o poeta João Apolinário Teixeira Pinto chegava a São Paulo e logo, em 31 de março de 1964, rompeu-se a ordem institucional e foram suprimidas as liberdades públicas no país. Empregou-se no jornal Última Hora, que ao surgir no início da década anterior apresentava-se como “um jornal vibrante, uma arma do povo”, com fortes vínculos com a classe operária e movimentos da esquerda nacionalista. Depois doo golpe militar, o jornal foi vendido ao grupo da Folha de S. Paulo. Apolinário assumiu a crítica de teatro de Última Hora, tornou-se editor, abriu espaço para as crônicas de Plínio Marcos, o mais significativo autor surgido naqueles anos, e me deu emprego. No jornal cumpriu todo o período de exílio até retornar definitivamente a Portugal em 1975, depois da Revolução dos Cravos.

Portugal 1982. Com João Apolinário em Marvão.

E se destino houver, ele reservou ao poeta participar da fase mais renovadora do teatro brasileiro, em especial o produzido em São Paulo, onde se concentravam propostas ousadas de pesquisa estética e debate apaixonado das questões nacionais. Foi o período de maior intervenção do teatro na sociedade, ecoando no palco as inquietações coletivas.

Herdeiro da profissionalização iniciada década antes, com o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia e a vinda dos diretores italianos como Adolfo Celli e Gianni Ratto, o teatro em São Paulo se estabelecia enfim como presença consequente, e de facto, na vida cultural e política no início dos anos de 1960. Liderado por uma brilhante geração de diretores – Antunes Filho, Ademar Guerra, José Celso Martinez, José Renato Pécora, Osmar Rodrigues Cruz, Augusto Boal, Flávio Rangel e Antonio Abujamra – o teatro buscava sua identidade brasileira. Seja na definição de uma estética própria, seja na discussão de temas urgentes da realidade política e social do país, o teatro colocava o homem brasileiro em cena, graças a uma geração igualmente brilhante de novos autores, como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Chico de Assis, Lauro César Muniz, Dias Gomes e Plínio Marcos, que se somavam a Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna e Jorge Andrade para ficarmos em alguns nomes daquele período.

João Apolinário se identificou com esse teatro e as suas críticas nunca esconderam a opção política e ideológica por um teatro engajado nas lutas dos homens do seu tempo. O que não o impedia de defender a profissionalização cada vez maior do fazer teatral propondo ampla estratégica de divulgação, comunicação e de diálogo com o público.

À frente dos críticos – Se a contribuição das suas críticas ao estudo do teatro está documentada para a história, a influência de Apolinário ultrapassou os limites do jornal Última Hora. Quando, a partir de dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5, o AI-5, a repressão militar e a censura fecharam o cerco sobre a sociedade brasileira e em especial sobre os artistas, Apolinário subverteu a cômoda tarefa da Associação de Críticos Teatrais de distribuir prêmios e consagrar ou enterrar carreiras. Em 1970, percebeu – ele, ninguém mais – que os jornalistas, incluindo os críticos, não podiam silenciar, como vestais, diante de uma nação encurralada pela violência, pela censura e o obscurantismo. Não podiam ser meros espectadores, ainda que indignados, passivos e omissos. Não bastava lamentar e ser contra a censura, era preciso tornar isso público. Apolinário percebeu mais, que sozinhos os críticos de teatro não faria a menor diferença nem sua ação alcançaria repercussão na sociedade. Era preciso congregar os críticos de arte de todas as áreas, do teatro à televisão, do rádio ao cinema, da música popular à literatura, da música erudita às então chamadas artes plásticas. Enfim reunir um número expressivo de vozes que pudessem ser ouvidas como resistência à censura oficial. O caminho mais curto seria criar a Associação Paulista dos Críticos de Arte, APCA, cujos estatutos ele mesmo redigiu, e que se mantém até hoje, embora a crítica de arte na imprensa tenha perdido presença e força.
Para que a nova entidade ganhasse projeção e visibilidade logo ao surgir, Apolinário pensou uma grande festa de entrega de prêmios ao final do ano e, no caso específico do teatro, propôs a criação do Prêmio Gil Vicente a lembrar a nossa origem e que, passadas tantas décadas, perdeu esse nome por razões inexplicáveis. Os premiados em todas as áreas receberam uma gravura criada especialmente por Maria Bonomi, já uma das mais importantes gravuristas brasileiras, além de consagrada cenógrafa. E a primeira festa de premiação da nova entidade teria que ser em um grande teatro. E foi. No histórico TUCA – Teatro da Universidade Católica de São Paulo, já então palco da resistência contra a ditadura, que anos antes viu nascer a música de Chico Buarque. A estrela da noite, também premiada, foi a cantora Elis Regina. Precisava mais? Estava lançada a Associação de Críticos de Arte a somar-se às vozes contra a opressão.

A militância de João Apolinário no teatro de São Paulo se deu também em outras frentes. Uniu-se a Eva Wilma, John Herbert, Raul Cortez e Antunes Filho, em encontros na redação do jornal Ultima Hora, para criar uma entidade de artistas-produtores, que não contavam com patrocínios, leis de incentivo, nem políticas públicas. Assim nasceu a Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo, para propor estratégias de produção, divulgação e proteção do seu trabalho.

No campo teórico, formulou o “Ensaio geral sobre uma ideia nova de teatro”, que circulou em folheto mimeografado, em que propunha “uma opção e um desafio” aos artistas do palco. Em síntese, desenvolveu um conjunto de técnicas para quebrar a passividade do espectador, a ser chamado a intervir diretamente no espetáculo, ao ponto de mudar o desenvolvimento da narrativa. A ideia nova não prosperou, mas vale lembrá-la para constatar a inquietação de João Apolinário que declarou no final do ensaio: “Como crítico de um teatro morto, o ofício para mim terminou”.

Era final de 1973. Não demorou muito, levado pelos ventos da Revolução dos Cravos, logo ele regressou a Portugal. Para ficar. Voltou a advogar, longe do teatro e da política, e dedicou-se à sua companheira inseparável, a poesia. Preparou um refúgio longe do tumulto das grandes cidades, em Marvão. Ali o poeta sonhava consumir seus dias ao lado de Maria, a companheira que o Brasil lhe deu.

O destino o traiu, se destino houver. Em 1986, aos 62 anos, João partiu, deixando uma poesia vigorosa e sempre atual como um farol a nos socorrer.

Foram quase seis anos de convivência diária. Breves anos que me parecem muitos mais pelo tanto que aprendi com João Apolinário. Poeta, ele me ensinou a olhar a vida com a paixão das santas utopias. Poeta, ele me ensinou a buscar o rigor e a insatisfação sem abdicar da coerência e da autocrítica permanente. Poeta, ele me ensinou a perseguir o sonho possível de um dia ver o tempo da fraternidade e da delicadeza. João não viu esse dia. Certamente também não o verei. Mas ele me ensinou a acreditar. Só assim vale viver. E foi assim que ele viveu e me ensinou a viver.

Aqui, cuidei de revisitar fatos. Mas há fatos que não podem ser revisitados, pois o seu único documento de autenticidade é o coração de cada um que conviveu com João Apolinário. Falo por mim.

Oswaldo Mendes

Jornalista, ator e dramaturgo, escreveu este texto para “A crítica de João Apolinário – Memória do teatro paulista de 1964 a 1971”, dois volumes organizados pela sua companheira Maria Luiza Teixeira Vasconcelos, publicados em 2013.

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