Goa como plataforma luso-indiana: uma proposta

Por Constantino Xavier

Não há quem deixe de sublinhar a natureza híbrida de Goa, como ponto de contacto e expoente máximo da interacção luso-indiana ao longo dos séculos. Mas esse terceiro espaço em que Goa se tornou é mais do que uma sandwich culture, enclausurada entre as influências portuguesas (europeias) e indianas (asiáticas).

Ainda há quem resista no campo conceptual da nomenclatura, mas não restam dúvidas de que Goa tem hoje a sua própria agência, ou seja, identidade. Podemos discutir se a arquitectura das casas em Goa é “indo-portuguesa” ou “goesa”. Ou se a gastronomia é simplesmente uma forma modular do que se come no resto do Concão, ou seja, simplesmente uma entre muitas espécies gastronómicas da costa ocidental indiana. O mesmo aplica-se a debates semelhantes nas áreas da sociologia (o sistema de castas goês), da linguística (a língua Concani) ou mesmo da política (comunidades vs panchayats). Até que ponto nos oferece Goa uma nova expressão, um novo “género” ou “tipo”?

Festival Holi em Margão
Festival Holi em Margão

O debate é eterno e característico do que o politólogo Giovanni Sartori descreveu como a tensão entre “género” (kind) e “grau” (degree). Até que grau a transformação de uma cultura (de uma arquitectura, de uma gastronomia, de uma língua…) pode ser reivindicada como um mero derivativo operando dentro de uma cultura maior? E, para alem desse grau, quando é que essa nova cultura (modular, híbrida) se divorcia e deixa de ser “sub-cultura”, para se afirmar como um novo género, autónomo? É esse o debate intelectual inerente ao embate “indo-português” versus “goês”, ou seja, entre os que olham para Goa como uma sub-cultura ensanduichada, sem expressão própria, e os que privilegiam a análise da sua autonomia (arquitectónica, linguística, cultural, política) como indicadores de uma nova forma de expressão.

Panaji

Para além dos sempre polémicos e conceptuais corredores da academia, é esta a questão fracturante que está também subjacente aos eternos debates populares sobre a identidade goesa, tão comuns na imprensa goesa de hoje.

Para alguns indianos, Goa é simplesmente uma forma corrompida de uma cultura subcontinental hindu/indiana que se quer coerente e monolítica. Nesse sentido, a acção política de 1961 deve ser entendida como uma mera formalidade que dá início a um movimento reintegracionista maior no plano social, cultural e religioso.

Para muitos portugueses e indianos, Goa sempre representou o expoente da diversidade imperial do Portugal colonial e da Índia pós-colonial. Em ambas as narrativas (Salazar vs. Nehru), Goa assumia um papel central como símbolo da pluralidade de cada um dos projectos políticos, seja no “Portugal do Minho a Timor” ou na Índia federal da “unity in diversity”. O troféu coube a Nova Deli.

Pangim: Shanta Durga Temple

Para os goeses, no entanto, Goa é simplesmente e por inerência o espaço territorial e emocional em que se inserem as suas práticas quotidianas. Há quem seja mais militante em sublinhar a autonomia deste espaço, procurando demarcá-lo activamente da vizinhança sub-continental ou aproximá-lo da sua dimensão portuguesa, lusófona ou europeia. Mas, no geral, a agência goesa é assumida pelos próprios de forma descomplexada, reflectindo uma enorme maturidade pós-colonial (os recentes debates sobre a “identidade goesa” são principalmente alimentados por não-goeses, originando na sua dificuldade, relutância ou oposição em integrar este espaço autónomo goês).

Perante estas várias agendas, para além do que me parece ser a incontestável natureza híbrida e autónoma da Goa de hoje, é elementar explorar o potencial que este espaço oferece às relações entre a Índia e Portugal. Goa pode e deve desempenhar um papel crucial na aproximação luso-indiana em curso. Como plataforma, pode mesmo desempenhar um papel maior na aproximação entre a Índia e os países lusófonos.

Uma proposta

Nos últimos anos a Índia tem acolhido um crescente número de investigadores e artistas portugueses e lusófonos. Trabalham nas mais diversas áreas e chegam ao sub-continente com diferentes objectivos. Goa ainda pesa de forma central na maioria dos projectos, mas há um crescente número a trabalhar para além dos territórios ex-portugueses: sem preparação adequada, muitos caem “de pára-quedas” em pequenas cidades ou regiões distantes da Índia, sem qualquer apoio local.

À semelhança do que os franceses souberam fazer em Pondicherry, no Sul da Índia, onde o Institut Français acolhe os indólogos francófonos (ou, já no campo das ciências sociais, com o Centre de Sciences Humaines, em Nova Deli), Goa poderia oferecer um Instituto Lusófono que acolhe estes investigadores e artistas lusófonos e facilita e sua imersão na “Índia profunda”. Em vez de se tornar no destino final, Goa assumiria assim um papel intermediário, como ponto de passagem, apoio e familiarização.

Há várias formas de realizar isto: o proposto instituto poderia oferecer apoio académico, aconselhando em termos de instituições indianas de contacto e acolhimento; poderia oferecer apoio logístico na marcação de viagens, alojamento, ou recrutamento de assistentes de investigação, pessoal e material de apoio; poderia oferecer cursos de língua e cultura; e poderia realizar pequenos fóruns e workshops para potenciar contactos, colaboração e interdisciplinaridade entre os vários investigadores e artistas visitantes (e, porque não, jornalistas e empresários também?).

Ao mesmo tempo, esta instituição poderia desempenhar um papel semelhante para o crescente número de indianos que procuram trabalhar no espaço lusófono, seja em Portugal, no Brasil ou em Moçambique. É preciso atrair a inteligentsia indiana de Nova Deli, Bombaim, Calcutá ou Bangalore para Goa, oferecendo-lhes apoio (logístico, académico, linguístico) para que possam embarcar de forma mais segura para o seu destino lusófono. Conheço dezenas de artistas, jornalistas, doutorandos e empresários indianos que estariam muito interessados em explorar tais recursos, se fossem oferecidos em Goa. E as grandes empresas indianas estão mais dos que dispostas a co-financiar uma iniciativa destas, tendo em conta o imenso mercados que os países lusófonos representam para os seus interesses.

Mahalasa Marayani Temple,

Tanto a Fundação Oriente como o Instituto Camões já se encontram presentes em Goa. O Brasil também tem estado activo no plano cultural em Goa. Uma iniciativa destas não necessita de grandes recursos financeiros, mas simplesmente de uma estratégia bem delineada e de um grupo de pessoas dedicado a implementá-la. Talvez se possa começar de forma mais modesta no plano bilateral luso-indiano e depois incluir uma componente lusófona.

Cabe, no entanto, ao crescente número de investigadores, artistas e outros portugueses interessados em “redescobrir” a Índia tomar a iniciativa e sublinhar a importância de uma instituição destas para o nosso trabalho. Só depois virá o apoio institucional.

Para alem dos debates sobre o tipo, género ou espécie de identidade goesa, um projecto destes não seria mais do que mais uma mera institucionalização do papel que Goa já desempenha há séculos, como trampolim para o subcontinente. Urge explorar este potencial de Goa como plataforma e como alavanca para a aproximação entre Portugal, o mundo lusófono e a Índia.

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