Ariane Mnouchkine dirige Les Belles Soeurs no Brasil

Por Jean Gabriel Carasso, Julia Carrera e Carlos Fragateiro

Quando, num sorteio, a protagonista, Germana, ganha um milhão de selos para serem colados em cadernetas e trocados por prêmios numa grande superfície comercial, ela se vê, pela primeira vez, diante da felicidade de que irá ‘possuir’ tudo aquilo que uma mulher almeja: “A casa vai ficar novinha, fogão, mobília e jogo de cozinha, a geladeira azul e um belo faqueiro daqueles bom, já escolhi, eu vou levar”, que ela canta na música que abre o espetáculo, enquanto o coro brada: “Vai ser tudo dela, tudinho dela, Grátis”. Essa felicidade que cai no seu colo, como uma benesse por ser uma boa esposa e mãe, atrai o olhar das convidadas para a noite de ‘colação de selos’ e durante esse encontro, os personagens são gradualmente revelados, revelando um arquipélago de personagens e servidões voluntárias, revoltas e demissões, aspectos múltiplos e complementares da condição feminina, como Michel Tremblay havia observado na sua família enquanto escrevia o seu texto em 1965. O caso terminou em ciúmes, drama e traição: todas as comadres, irmãs, vizinhas, cunhadas, a filha e suas amigas, enquanto colam os selos se perguntam ‘Por que ela e não eu?’, levando ao catártico momento da peça, onde todas estraçalham as caixas de selos, roubando furiosamente, diante de uma Germana atônita, mas não transformada.

Esta a história da peça “Les Belles-Soeurs” de Michel Tremblay, a primeira peça totalmente escrita em ‘joual’, o dialeto popular franco-canadense marcado por lacunas fonéticas e lexicais e pelo anglicismo, e com ela o autor dá voz (literalmente) a todo um segmento da população até então invisibilizado em sua característica primordial, a língua.

Uma obra-prima

Retomada hoje no Brasil, em outra época, outra geografia, um contexto cultural muito distante da América do Norte, essa peça tipicamente de Quebec “não envelheceu; foi traduzida para 25 idiomas e levada à cena em muitos países, o que demonstra a sua dimensão universal. É por isso que é uma obra-prima “, garante Ariane Mnouchkine. Não se enganou o público que fez do espetáculo um triunfo, carregado de riso e emoção, de reflexão e identificação, também sensível à dimensão musical essencial nesta versão. Uma dúzia de músicas, individuais e / ou coletivas, pontuam, esclarecem, aprofundam e contextualizam as situações, à maneira de “canções” do teatro de Bertolt Brecht. Muito além das canções simples, elas lançam uma luz sobre o que, em cada momento, está em causa. Grandes momentos de emoção que contrastam com a dimensão cómica, quase moliéresca, de muitas cenas. Passamos do riso às lágrimas, da voz falada à voz cantada, sem distinguir, entre este grupo de vinte atrizes, quem são as cantoras que representam ou as atrizes que cantam. Obra notável ao nível do trabalho vocal, individual e coletivo, com música original de Daniel Bélanger, e a direção musical de Vladimir Pinheiro.

Uma cópia artística

A originalidade artística deste projeto é marcada por duas decisões de Ariane Mnouchkine. A primeira: não toca, se não muito marginalmente, na encenação de René Richard Cyr. Decoração idêntica, trajes semelhantes, jogos de palco sem modificações. “A encenação foi perfeita, por que deveria ser alterada?” diz Ariane Mnouchkine. “Eu apenas fiz uma obra de transmissão, uma cópia à maneira de pintores que copiavam obras de arte em museus. Ou mesmo ao modo de Brecht que considerava que uma obra teatral não se limita ao texto, mas engloba todos os elementos da representação “. Ariane Mnouchkine não assina a encenação, ela assume a “supervisão artística”, processo de trabalho que às vezes acontece na coreografia, numa criação adotada de forma idêntica por um novo coreógrafo, mas muito raramente em projetos teatrais. Na verdade, observamos, é a precisão do jogo e as situações, o equilíbrio dos personagens, os ritmos, os contrastes, a qualidade da luz e do som, enfim, a própria vida do show, a vida no show, que ela assumiu com a energia e o talento que conhecemos. Lembrando, se necessário, que a encenação não se limita à localização dos elementos, dos movimentos e das imagens produzidas, mas que é realmente o próprio significado dessas imagens e desses movimentos que ” é preciso destacar, através da trama e da emoção das atrizes. E isso foi feito aqui de forma brilhante, a partir do texto traduzido por Julia Carrera! Copiar, como tradução, também é uma arte.

Funções compartilhadas

Segunda decisão importante: confiar os quinze papéis da peça a … vinte atrizes. “Eu não queria me impor a tortura de escolher entre várias atrizes que eram perfeitas para o papel”. Daí a proposta de dobrar praticamente todos os papéis, cada um confiado a duas atrizes. Essa decisão, difícil para algumas aceitarem – o sentimento de propriedade do papel é sempre poderoso -, provou ser uma garantia do risco necessário, de sensibilidade sempre à procura de atrizes que nunca sabem com quem irão interpretar a próxima performance. Esse processo requer uma partilha real do papel, que é semelhante e singular de acordo com cada atriz. Os ensaios foram fascinantes neste ponto, que permitiram uma transmissão autêntica do jogo, diretamente entre as atrizes, “como no teatro balinês””.

Como consequência dessa escolha, o espetáculo é acompanhado por um “pequeno coro” no estilo do teatro antigo, composto por personagens que não estão na performance do dia. Liderado por um choryphéé, o pequeno coral comenta, apoia, às vezes participa das peças de teatro. Alguns personagens podem integrá-lo quando não estão em jogo. Essa originalidade significativa que abre e amplia o assunto da peça, obviamente lembra a estética frequentemente usada no Théâtre du Soleil. Acrescentemos que a fórmula do compartilhamento de papéis também responde, com agilidade, às difíceis condições econômicas do trabalho das atrizes no Brasil, à obrigação de aceitar as propostas que lhes são propostas, correndo o risco de impedir a exploração do espetáculo tão logo deles estaria ausente. O espectador ideal será, portanto, aquele que assistirá a duas apresentações sucessivas, permitindo que você veja todas as atrizes em ação e medir as diferenças sutis entre elas!

Comprometimento

Mas é sobretudo o compromisso considerável de todos os participantes que faz desta aventura uma experiência teatral, política e humana extraordinária. Hoje, reunimos vinte e cinco artistas no contexto brasileiro, apresentando precisamente a condição das mulheres, misturando atrizes de cores e de diferentes gerações, garantindo uma produção de alta qualidade com tão poucos recursos financeiros … um ato de resistência, artística e política, sob a condição de minorias, mulheres, artistas, neste país. Sem jamais ser um espetáculo feminista, didático ou educacional, ou fazer referência à situação política do momento, As Comadres é, no entanto, um teatro de profundo compromisso coletivo. O público não se engana ao enfatizar esse aspecto nas reuniões que seguem o programa. “A produção do espetáculo em si constitui uma possível resposta às questões de solidão e servidão voluntária das mulheres, levadas pela peça”, afirma Ariane Mnouchkine novamente. No Rio de Janeiro, durante a nossa estada, uma atriz foi revistada inteiramente pela polícia durante uma verificação de rotina, sob o pretexto de que “as atrizes devem usar drogas!”, ordena o governador do estado!

Por fim, notemos quanto, desta vez mais do que nunca, a função de diretor de palco / supervisor artístico consiste em tornar-se inútil e em permitir que o teatro se desdobre sozinho, em contato com o público ao longo das performances. Teremos que esperar uma digressão europeia, em Portugal e talvez na França, para julgar esse desenvolvimento. Como Comadres obviamente merece ser apresentado um dia no Théâtre du Soleil. O círculo estaria fechado!

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