Ana de Hollanda: O Brasil possui uma capilaridade cultural fora do comum

Cresceu e aprendeu a conhecer o mundo numa família e numa casa por onde passavam muitos intelectuais e criadores brasileiros, e também muitos jovens resistentes. Acompanhou Chico Buarque, o seu irmão mais velho, nos seus primeiros projetos em plena ditadura militar, projetos tão significativos como A Morte e Vida de Severina e Calabar.

Foi Ministra da Cultura da Presidente Dilma num Brasil que tem lá dentro todo o mundo misturado, e tem uma ideia do que deveria ser uma política cultural para o universo da língua portuguesa.

Em política defende uma clara união do setor progressista do Brasil, e, em termos internacionais, integra o movimento que defende a atribuição do Prêmio Nobel da Paz de 2021 ao Contingente Henry Reeve de brigadas médicas cubanas.

Concedeu esta entrevista dias antes de entrar em estúdio para gravar o seu novo disco.

LP – Foi Ministra da Cultura da Presidente Dilma e dum país que é quase um continente. Teve consciência nesse período que o Ministério da Cultura era um órgão pequeno para muitos segmentos a serem envolvidos num país multicultural, onde cada região tem uma cultura, uma diversidade, uma linguagem.

AH – Realmente o Brasil possui uma capilaridade cultural fora do comum e complexo até se comparado o Ministério da Cultura com outros maiores, mas focados em um número menor de tópicos. Considerando que inicialmente esta terra era habitada por diferentes povos indígenas, até que chegaram os portugueses com uma cultura que, por sua vez, carregava influências mouras, latinas, fenícias, hebraicas e do norte da Europa. Em seguida vieram os africanos escravizados de várias regiões do continente. A colônia foi temporariamente ocupada por holandeses e franceses e recebeu influência espanhola do período em que Portugal e Espanha estavam ligados sob a coroa de Filipe II. A partir do fim do século XIX começaram a chegar levas de imigrantes da Itália, Alemanha, Polônia, Espanha, Portugal, oriente médio, Japão, China, Coreia e muitos outros. Formaram colônias locais com suas tradições que mesclavam com as culturas das regiões onde se instalaram.

Só isso já explica as diferenças das manifestações culturais típicas de algumas regiões como, por exemplo, o Bumba-meu-boi, praticado fortemente no Maranhão (entre as regiões norte e nordeste do país), exista com fortes raízes em Santa Catarina (no sul do país); o samba, tão forte principalmente no Rio de Janeiro e Bahia tem suas diferenças uma vez que além do intercâmbio interno, recebeu em cada região influências de outros ritmos locais.

Da mesma forma, a língua usual de cada região conta com expressões e sotaques diferentes. Um fato bastante curioso que tomei conhecimento nessa época é que o “R” caipira, praticado principalmente no interior de São Paulo, parte de Minas Gerais, do Paraná, Goiais, Mato Grosso do Sul, é também usual na língua espanhola falada no Paraguai. Acredita-se que esse “R” seja uma influência da língua dos povos guarani, a mesma que se falava normalmente em São Paulo até fins do século XVIII, e ainda é uma das línguas oficiais no Paraguai.

 

LP – Afirmou recentemente que a “cultura é a expressão mais espontânea do pensamento de um povo. (…) A liberdade de criação é fundamental. O dirigismo cultural e a censura são opostos à criação artística”.

AH – Não tenho dúvidas de que a cultura é a forma de expressão que, consciente ou inconscientemente, traduz o sentimento e as ideias de cada pessoa assim como de povos. Ela pode se manifestar em obras de arte de forma alegre, esperançosa, irônica, crítica, revoltada, raivosa ou triste. Ela não tem compromisso com a verdade como as ciências, por regra, têm. Comumente é ficcional, algumas vezes tende ao surreal, não buscam tender ao considerado moralmente e eticamente certo ou errado. Mas, em qualquer de suas linguagens artísticas, quase sempre trazem um sentido contestatório que provoca reflexões subjetivas.

Por tudo isso, a cultura é sempre uma ameaça a governos totalitários que não sabem lidar com pensamentos e expressões indóceis.

LP – Sente que hoje a arte e a cultura representam tanto para a liberdade como, noutros tempos, representaram?

Recordo aqui três momentos seus quando:

– cantava e gravava, ao lado das irmãs, as músicas, recém compostas, pelo seu irmão Chico Buarque, para a peça Morte e Vida Severina. Uma peça que falava do sertão e do agreste pernambucano e assombrou a Europa;

– na década de setenta, num dos períodos mais negros da história do Brasil, estava nos bastidores de “Calabar”, peça do seu irmão Chico, que foi proibida debaixo de forte esquema policial, causando enorme prejuízo aos produtores atores;

– em plena luta pela redemocratização do país, no ‘Primeiro de Maio’ de 1981, nos bastidores ou como assistente de palco, onde se apresentavam artistas, enquanto isso, no estacionamento, dois militares do exército brasileiro se preparavam para explodir uma bomba que, afinal, explodiu no colo de um deles.

 

AH – Eu vivi esses períodos lendo jornais, ouvindo rádio e através de conversas com amigos, parentes e conhecidos sobre o terror da ditadura militar. A casa em que vivíamos com meus pais era vigiada, o telefone “grampeado”, as cartas violadas, conheci muita gente que teve que se exilar, foi presa e barbaramente torturada e alguns assassinados. Mas essa casa nunca deixou de ser um ponto de encontro, de abrigo e de resistência onde intelectuais, jornalistas, estudantes frequentavam em parte para discutir política com meu pai, historiador e professor universitário, e, em parte, porque eram amigos e colegas dos filhos. Me formei politicamente dentro de casa, mas continuei lutando por justiça pela vida afora. A música, o teatro, o cinema, a literatura e as artes plásticas refletiam o período obscuro que vivíamos.

 

Hoje o governo autoritário não chega nem de perto ao que vivemos. Mas, de outra forma, é terrivelmente pernicioso para a população e para a cultura. Enquanto nos anos 70, apesar da censura a artistas mais rebeldes como Chico, Plínio Marcos, Taiguara, grupos teatrais como o Arena, Oficina, Opinião, o governo atraía novos artistas através de projetos cativantes como o Pixinguinha, o Mambembão, assim como criou a Embrafilme para o cinema e outros. Agora a cultura está sendo sufocada, esganada financeiramente assim como pela censura indireta. Quem pode, foge para Portugal, por exemplo, para poder trabalhar. A grande reação no momento está partindo de artistas oriundos das comunidades mais vulneráveis como, por exemplo os músicos Emicida, Criôlo, Marcelo D2, escritores como Geovani Martins, grafiteiros conhecidos ou voluntariamente anônimos, todos trazendo a voz das periferias, dos oprimidos. Eles, com suas linguagens rebeldes que não esperam e nunca esperaram nenhum apoio oficial estão conquistando a juventude.

LP – Como é que explica que pessoas como Regina Duarte, que como atriz fez coisas maravilhosas, se possam identificar com um governo tão intolerante, como o de Bolsonaro, e ocupar cargos nesse governo?

AH – O caso de Regina Duarte está longe de ser inédito. Inúmeros artistas de qualidade foram cooptados também durante a ditadura militar. Na história universal, esses oportunistas não foram raros.

LP – Apoiou Ciro Gomes nas últimas presidenciais, na segunda volta apoiou Fernando Haddad, afirmando sempre que desde o início deveria ter havido um compromisso entre as forças progressistas. Esse compromisso não existiu e deu os resultados que deu com a eleição de Bolsonaro. Acha que hoje a vontade de criar pontes entre as forças progressistas é uma realidade e que a campanha de Guilherme Boulos e Luiza Erundina, em São Paulo, é já um exemplo desse caminho?

AH – Continuo cada vez mais convicta de que só venceremos quando a questão da hegemonia na esquerda deixar de ser prioritária, como aconteceu em 2018 e acabou levando Bolsonaro ao poder. As direções partidárias, que ainda estão se estranhando, têm que entender que, no poder, qualquer partido acumula um desgaste natural, principalmente quando a direita se soma à extrema-direita como aconteceu. Claro que fake-news influenciaram muito em 2018, mas isso já vinha sendo utilizado há algumas eleições. Está mais do que na hora dos setores progressistas pensarem estrategicamente se quiserem vencer as eleições em 2022.

Eu adorei a chapa Boulos-Erundina e cheguei a sonhar que o desgaste dos tucanos colaborasse para uma mudança radical. Guilherme Boulos é um quadro excepcional, inteligente, carismático e que transmite sinceridade e coerência no que diz e faz. Ele ainda é jovem e, com certeza, vai se eleger para cargos maiores no futuro. Mas nessas eleições da capital paulistana, um partido pequeno, sem dinheiro e tempo de TV, disputando com o candidato à reeleição apoiado pelo governador do Estado mais rico do Brasil, era covardia, era um desafio a Golias. Além do mais, a maioria dos partidos tidos como esquerda, mesmo sem a chance real de Boulos, não o apoiaram no primeiro turno.

 

LP – Está a apoiar a campanha internacional para a candidatura ao Prêmio Nobel da Paz de 2021 do Contingente Henry Reeve de brigadas médicas cubanas. Porquê?

AH – O trabalho dos médicos cubanos das Brigadas Henry Reeve vem se destacando há quase duas décadas em vários continentes, ao tratar principalmente das consequências de desastres de grandes proporções, epidemias e pandemias, em que muito frequentemente faltam médicos, ou mesmo os médicos locais evitam enfrentar. Foi formidável a atuação deles no combate ao vírus Ébola na África, aos furações e terremotos em vários países e, mais recentemente, a pronta atuação deles no combate ao Covid-19 até na Itália, país que aderiu ao bloqueio a Cuba imposto pelos Estados Unidos da América.

Por ser uma iniciativa essencialmente de solidariedade, ao oferecer a colaboração de profissionais reconhecidos internacionalmente como de excelência, é mais do que justo que essas brigadas recebam o Prêmio Nóbel da Paz.

LP – Quando era Ministra a Unesco aprovou a cidade do Rio de Janeiro como Patrimônio da Humanidade, sendo a primeira cidade do mundo a conquistar esse título na categoria Paisagem Cultural. Nessa altura referiu que o carioca tinha tido um peso importante na decisão, pois para além da paisagem ser única, pesou muito a relação do morador com a cidade.

Acha que este reconhecimento trouxe novas oportunidades para a cidade e para a preservação das belezas cariocas e compromisso internacional então assumido está a ser respeitado? O Rio ainda é a cidade maravilhosa que vive no imaginário de todo o mundo?

AH – O Rio, visto de longe, ainda é a Cidade Maravilhosa, mas, surpreendentemente, mesmo com esse título da UNESCO, que pode até vir a perder, tem sido muito maltratada. Falo isso com dor porque, paulistana que sou, cresci sonhando com o dia em que viria morar definitivamente naquela cidade deslumbrante, alegre, arejada, com um povo liberal, simpático, ligeiramente malandro, “boa praça” da minha infância. Graças ao abandono dos últimos governantes, principalmente, a cidade está abandonada, com 1/3 dela dominada pelas milícias, uma polícia em grande parte corrupta, assim como outros poderes institucionais. Mas eu não perco as esperanças e não saio desta cidade por nada!

LP – Foi também no seu consulado como Ministra que se realizou o ano Brasil Portugal e Portugal Brasil, um ano em que os dois países se propunham reunir um conjunto de iniciativas culturais e empresariais, através de uma estrutura de cooperação, entre entidades e agentes públicos e privados, com a realização de manifestações artísticas e culturais dos dois países, de encontros para promover a criatividade e a diversidade do pensamento, intensificar o intercâmbio científico e tecnológico e estreitar as relações econômicas.

Sobre o ano do Brasil França e França Brasil impressionou-nos muito o facto dos criadores brasileiros dizerem que desse ano só ficaram as cadeiras. Na sua perspetiva o que ficou, para além das cadeiras, deste ano Brasil Portugal e Portugal Brasil?

 

AH – Em relação ao Ano Brasil Portugal e Portugal Brasil, lamentavelmente pouco posso comentar porque, apesar de ter trabalhado em toda organização e, junto com os chanceleres dos dois países, lançarmos o primeiro evento aqui no Brasil, eu estava com passagens compradas e hoteis reservados em Lisboa e outras cidades portuguesas quando, dois dias antes do embarque, fui substituída como ministra pela então senadora Marta Suplicy, devido a acomodações políticas e eleitorais.

LP – Tem em cena um show-conversa sobre Antonio Carlos Jobim, o grande mestre e compositor da bossa nova e de sambas-canções inesquecíveis. Para além da amizade com Tom Jobim esse show conversa não será um pouco também uma homenagem à casa da sua família, o velho casarão da Rua Buri nº 35, no bairro do Pacaembu, que, no período da ditadura militar, se transformou em espaço de resistência, reuniões, encontros abertos, clandestinos e abrigo de pessoas e materiais.

AH – Essa casa, onde se formatou grande parte de meus conhecimentos, ideias, sensibilidade, humanidade e caráter, é citada explicitamente em uma parceria minha com o grande compositor Novelli, chamada Beija-flor, Colibri.

 

Não nego que fui uma pessoa privilegiada pela oportunidade de conviver, naquela casa, com pessoas brilhantes, como Vinícius de Moraes, João Gilberto, Manuel Bandeira, Dorival Caymmi, Flávio de Carvalho, e, pela vida afora, com incontáveis personalidades fascinantes. Mas, mesmo com todas essas centenas de pessoas que me alimentaram no passado, vivo e tenho que evoluir voltada para o presente e futuro. Sendo assim, tenho escrito letras e composto eventualmente, me apresentei cantando até a chegada da pandemia que interrompeu toda a atividade cultural, mas, daqui a uns 20 dias, devo estar entrando em estúdio para gravar mais um disco autoral.

LP – Para quem dirigiu o Ministério da Cultura do maior país de língua portuguesa não deve ser difícil pensar uma estratégia cultural para todo o universo desta língua. Quais os princípios a que deveria obedecer?

AH – Uma estratégia cultural para todo o universo da língua portuguesa só pode ser decidida respeitando cada cultura nacional e sua autonomia, na espectativa de que cada um faça um balanço do que é essencial com respeito ao seu povo e o que pode ser acordado com os demais países.

Há uma consciência de que todos herdamos influências ibéricas e africanas, sendo que o português arcaico de 1500 levado para as colônias já não é o mesmo falado nos séculos seguintes, nem em Portugal e nem nos demais países. Aliás há expressões da língua portuguesa ou de línguas e dialetos de origens africanos faladas ainda hoje no Brasil, que não se usam mais em suas terras originais.

Mas, apesar de todas as diferenças, que tendem a aumentar com o tempo, cerca de 260 milhões de pessoas praticam o português, a quinta língua mais falada no planeta. Quando eu estava no Ministério da Cultura, participei, em Angola, de um encontro da CPLP para discutirmos uma maior integração cultural. Entendendo que a cultura desperta sentimentos e identidades muitas vezes não devidamente estudados, lançamos projetos de integração cultural através do intercâmbio de audiovisual, da música, da literatura, das artes cênicas, setores que usam a língua e com o potencial de reacender lembranças inconscientes, muitas vezes só transmitidas por tradição oral.

Não sei dizer o que hoje está sendo feito a esse respeito. Temo que tudo tenha sido paralisado.

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