Contra a Instalação do Medo

Por Carlos Fragateiro

Leva muito tempo a instalar o medo?
A instalação do medo é uma coisa rápida. Antes que dê por isso, já ele está
instalado e pronto a usar. Antigamente levava anos. Agora, com as novas
tecnologias, é apenas questão de minutos.
(…) isto da instalação do medo não só é para o bem de todos, também só
é possível com a colaboração de todos.
Veem? Ainda não completámos a instalação e já os senhores se encontram
nesse estado. É para verem a eficácia dos nossos métodos, o poder da
nossa tecnologia, a qualidade dos nossos produtos.
Rui Zink

Estamos a viver um tempo onde ganha forma e se torna mais visível uma conspiração contra a inteligência, uma conspiração para reduzir o mundo a uma ideia sem alternativa e transformar cada um de nós em figurante da sua própria vida, como se voltássemos ao tempo da Luísa do poema a Calçada de Carriche de António Gedeão, ou das cadeias de montagem dos Tempos Modernos de Chaplin. Vivemos uma conspiração apoiada na instalação dos muitos mecanismos de dominação, tão leves e subtis que mal se sentem, capazes de controlar todos os nossos passos, paralisando-nos. Mecanismos de dominação que instalam o medo de diferentes formas e com múltiplas estratégias, provocando, aos poucos e poucos, um deserto de ideias capaz de atrofiar, por falta de uso e de incentivos, o músculo do pensamento, o nosso cérebro, transformando o ato de pensar numa curiosidade inútil.
É sintomática a forma como os diferentes poderes direcionam e condicionam a construção social da realidade, transformando o pensamento único no verdadeiro retrato da realidade, impondo a “ideologia do realismo incontornável”. Os argumentos que, há uns anos, serviram para justificar a invasão do Iraque, e que hoje se percebe que não passaram de uma grosseira manipulação, ou a forma como, mais tarde, se construíram os argumentos para estrangular a Grécia, transformando primeiro os ministros gregos em estrelas da sociedade do espetáculo capazes de desafiar os poderes dominantes da Europa, e, com a mesma velocidade com que os tornaram estrelas, silenciaram o seu pensamento e passaram a mensagem que, sem dinheiro para as necessidades primárias, tinham de se sujeitar a tudo o que lhe quiseram impor, são um exemplo paradigmático de como a realidade é manipulada e as questões essenciais são adaptadas de acordo com os interesses dominantes.
O sistema começa por se defender do que o questiona e que, na sua perspetiva, ameaça a tranquilidade/ normalidade das instituições. Depois cria instrumentos de controle cada vez mais apertados, aumenta a burocracia e torna a vida das pessoas mais complicada e difícil. Ao mesmo tempo bombardeia diariamente com a artilharia pesada, acumulada ao longo dos anos no poder, multiplicando os inimigos e os perigos, com argumentos e informações que as desviam do essencial e as obrigam a canalizar as energias para outras funções e atividades, longe do que é essencial, levando-as a lutar contra moinhos de vento, esgotando-as.
Finalmente, porque o poder vê em cada sombra uma ameaça, limita os movimentos, mandando atirar a tudo o que mexe e que minimamente cheire a espaço de liberdade. Uma estratégia que é aplicada como uma vacina para os que pensam e acreditam que ainda vale a pena sonhar, mostrando-lhes que não há alternativas às políticas dominantes, contaminando-os com um pensamento único onde a austeridade é inevitável. E as teias que se criam acabam por ser tão grandes, tão complicadas, reduzindo cada vez mais os nossos horizontes ao óbvio, impedindo-nos de olhar para o mundo com olhos de ver, de olhar para além dos reflexos da crise, o que leva a que muitos de nós pensemos que a estupidez e a imbecilidade tomaram definitivamente conta da nossa vida e que o tempo da usura e da ganância está para durar.

Viver entre dois Tempos

Vivemos ainda um tempo em que o efémero, o imediato, o que está na moda e responde aos interesses do discurso ou discursos dominantes, do que nos está mais próximo e não nos contradiz, é o que é privilegiado, premiado, apoiado. Vivemos ainda o tempo em que os pequenos poderes se multiplicam e bloqueiam qualquer mudança, impedindo a emergência de ideias e projetos diferentes, secando a criatividade e a imaginação que são a seiva que torna viva cada comunidade, impedindo que os talentos se afirmem e as sociedades evoluam. Uma realidade que acontece tanto ao nível local, como global, mas de que só nos apercebemos quando algum dos Donos Disto Tudo entra em desgraça e cai do pedestal. Mas quando um cai, sem darmos conta, há logo um outro que aparece e perpetua o sistema.
E o que é estranho é que tudo isto aconteça num tempo em que a inovação e o avanço do conhecimento, resultante das interações e cruzamentos da multiplicidade e diversidade dos conhecimentos atuais, atingiram patamares únicos, com os grandes avanços ao nível das neurociências e da perceção das potencialidades infinitas do nosso cérebro, num tempo das grandes evoluções tecnológicas – dos telemóveis à internet, da Apple à Nokia, do GPS ao Google, do genoma aos medicamentos personalizados, à biotecnologia, à nanotecnologia, às tecnologias verdes. Um tempo em que a troca de ideias e a circulação de informação parece cada vez fácil e as experiências e os projetos, onde um outro modo de estar no mundo e na vida estão a emergir por todo o lado, como se está a ver com o trabalho colaborativa realizado para se encontrar a vacina para a Covid-19.

Lutar pela Mudança

Se formos capazes de surfar as ondas da crise e de olhar para além do horizonte em que nos querem fechar, apercebemo-nos do como as mudanças estão a acontecer e a ultrapassar tudo aquilo que até agora pudemos imaginar, mostrando mais uma vez como a complexidade do real, com as suas dinâmicas sociais muitas vezes contraditórias e que rompem com as previsões da normalidade, nos contínua a surpreender. Como se estivéssemos, e eu acredito que estamos mesmo, entre um tempo que é velho e que parece eterno, e um outro, um novo tempo, que vai ser um tempo de mudança de cabeças, mais do que de poderes, pois é aqui, numa outra forma de pensar e estar no mundo, que as mudanças efetivas vão acontecer. Uma mudança crucial para a sobrevivência e a evolução da nossa civilização, onde a inteligência e a sensibilidade vão ter de voltar ao comando dos tempos.
Sei que tudo isto é difícil quando crescemos num mundo e num tempo onde se elogiava a contradição e se pensava que era no conflito, na luta dos contrários, que se poderiam encontrar novas sínteses, que o mundo evoluía. Um mundo e um tempo onde a dialética estava na ordem do dia e por isso criaram-se muros, aprofundaram-se e aperfeiçoaram-se as fronteiras, especializou-se o conhecimento, perdeu-se a noção da totalidade, tornando-nos incapazes de nos pormos no lugar do outro. E ainda mais difícil porque o diálogo se tornou sinal de fraqueza e foi perdendo espaço, e a análise do mundo e da vida se foi reduzindo e ficou cada vez mais simplista, onde nos pediam para estarmos ao lado do bom contra o mau, do branco contra o preto, do cowboy contra o índio. Como se fosse possível pensar que as nossas ideias eram sempre melhores e mais eficazes que as dos outros, como se fosse possível dizer que as boas soluções são as nossas e que as dos outros não prestam, como se fosse possível construir o futuro só com um olhar, com uma perspetiva, a nossa.

Privilegiar o Diálogo

O novo tempo será o tempo do diálogo e não da confrontação, o tempo da partilha e não da acumulação, o tempo da colaboração e não da concorrência, o tempo dos encontros entre as diferentes formas de olhar e pensar o mundo, o tempo dos múltiplos encontros para encontrar as propostas mais eficazes e funcionais, propostas que deverão ser a síntese do que melhor existe ao nível do conhecimento e da experimentação no mundo. Ser inteligente é ter a capacidade de interligar, de fazer pontes, de criar novas combinações.
Naturalmente que estes múltiplos encontros e cruzamentos só podem acontecer se existirem pontes, mas a sua construção exige muitos cálculos, muitas visitas ao terreno, exige alicerces sólidos, um entrelaçar dos diferentes materiais que as dotem de resistência e flexibilidade, exige tempo, muito tempo. E neste tempo de urgências, o muito tempo é algo que não temos. Por isso há que potenciar as pontes existentes, utilizando desde já as que estão visíveis e têm funcionado, e revelando ou restaurando aquelas que foram sendo deixadas para trás, abandonadas, muitas vezes por interesses supérfluos ou mesquinhos.
Temos de voltar a mobilizar os Construtores de Pontes e os Conspiradores do Futuro, temos de voltar a mobilizar todos aqueles que acima de tudo prezam o bem-estar do outro e da comunidade, temos de mobilizar todos aqueles que têm a consciência de que cada um de nós só será feliz se a comunidade o for, como muito bem ensina a filosofia Ubuntu.
Temos de mobilizar todos aqueles que sabem que o futuro só se inventa em Liberdade e o universo que pensa e comunica em português, com uma Língua donde se vê o Mar como disse Virgílio Ferreira, tem a Língua e o Mar como instrumentos privilegiados para o fazer.

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