Faço Teatro para Construir Espaços de Liberdade
Tenho cada vez mais consciente que a sociedade atual tudo faz para que cada um não seja mais do que um figurante da sua própria vida, espectador passivo de objetos que outros produzem, peça duma cadeia de produção cada vez mais automatizada, consumidor de produtos que outros desenham, numa prática quotidiana onde somos meras peças duma grande máquina que acaba por ser conduzida e controlada por aqueles que socialmente se consideram no direito e com todo o poder de manipular. Como se voltássemos aos Tempos Modernos que Chaplin também retratou no seu filme, como se a Sociedade Irracional de que nessa altura se falava, tivesse finalmente ganho direito de cidadania. E tudo isto enquadrado por um grande sistema de controlo, onde todos os nossos passos podem ser escrutinados, pois os sistemas de vigilância estão tão sofisticados que até são capazes de nos convencer que nunca fomos tão livres como no interior deste sistema capaz de policiar o mundo inteiro. Como se finalmente o “1984″, de George Orwell se tivesse tornado realidade.
E isto é feito em contracorrente ao que hoje nos mostram os avanços da neurociência, e da tomada de consciência das múltiplas potencialidades que tem o nosso cérebro, dos estudos sobre os modelos de organização das comunidades e das empresas, onde não basta haverem grandes líderes para que as coisas funcionem, pois não serão eficazes se não tiverem com eles pessoas autónomas, capazes de produzir ideias, de trabalhar em equipa e com toques de genialidade.
A estrutura das orquestras e das equipas desportivas são hoje uma referência em termos organizativos, e não é por acaso que cada vez vemos mais gestores e líderes de opinião a frequentarem cursos, dirigidos por treinadores ou maestros, para perceberem a lógica de funcionamento duma grande orquestra ou duma equipa desportiva de referência. Nas performances desportivas ou musicais não é possível pensar que o maestro ou o treinador são o centro de tudo, os grandes responsáveis pelo sucesso, pois no terreno de ação a performance de cada músico ou atleta é fundamental, assim como o trabalho de equipa, e as grandes vitórias e as interpretações geniais devem-se à capacidade da equipa para trabalhar em conjunto, ao talento e genialidade de cada jogador, e, naturalmente, à capacidade e ao modelo da liderança.
O Lugar do Teatro
Considero o teatro como a manifestação humana onde tudo pode acontecer, como um espaço e um tempo onde cada um pode dar corpo e tornar visíveis as suas potencialidades, num jogo que abre a possibilidade de cada um assumir diferentes personagens, as personagens que tem dentro de si e que o quotidiano social em cada momento faz crescer e transformar. Ao interpretá-las descobre outras perspetivas, descobre a multiplicidade do seu ser, descobre como é capaz de falar a várias vozes, de interagir e ficcionar situações que revelam o quotidiano, reavivam a memória e inventam os futuros possíveis.
Pela sua importância a prática do teatro deveria hoje ser obrigatória, entendendo a ideia de obrigatário como algo que cada um de nós sente como fundamental para o seu bem-estar, tal como aconteceu com a ideia da manutenção física. Hoje a ida ao ginásio passou a fazer parte das nossas preocupações quotidianas, no que considero uma vitória estratégica dos especialistas da motricidade
humana, enquanto muito poucos se preocupam com a manutenção do cérebro, esse músculo da inteligência. E a verdade é que o cérebro é um músculo que se não o treinarmos atrofia como todos os músculos.
O Teatro e a Invenção do Futuro
À questão porque escolheu o teatro, Simon McBurney responde que é o melhor meio que encontrou para se questionar acerca do que não compreende – seja na vida, nos comportamentos humanos, no funcionamento do cérebro, mas também na sociedade, na política, na história e mesmo na pré-história. Para ele o teatro deve ser
intrinsecamente humano vivo, em movimento, de forma nenhuma museológico ou repetitivo. Deve ser o ponto de encontro entre um artesão tradicional da cena e as novas técnicas mais sofisticadas, para que aconteça uma polifonia combinando as palavras, as imagens, a música, as ideias e as histórias, ao mesmo tempo que oferece aos atores um verdadeiro espaço de liberdade. Uma polifonia ao serviço do texto e da narrativa convergindo para um objetivo, um ponto: a criação duma emoção que só o teatro pode fazer nascer.
O que é formidável com o teatro é que tudo aí é permitido. É uma arte ladrões, mendigos e bandidos pois podemos roubar tudo o que quisermos: as mais belas coisas do mundo, as ideias mais complexas, nada está fora do nosso alcance. Simon McBurney compreendeu-o e é por isso que a Complicite, a sua companhia de teatro, ignora as fronteiras e atravessa-as sem papéis oficiais, única forma de ter uma visão do mundo, uma visão que reúne arte e política, mas que tenta também revelar as múltiplas camadas de significação que coexistem em tudo o
que em cada instante nos rodeia.
A Descoberta da Dimensão Social e Política
Neste momento o teatro é um espaço do pensamento, de reflexão e invenção do novo mundo, é uma prática social que tem como terreno de ação a própria vida, onde a pessoa é o centro de todas as preocupações, é um lugar privilegiado de onde podem emergir algumas das respostas às questões colocadas por aqueles que, nas diferentes áreas do saber, têm consciência que a actual fragmentação e especialização do conhecimento científico tem forçado o homem a abandonar o seu desejo de unidade do conhecimento. O teatro tem o potencial – que não existe em nenhuma outra forma de arte – de substituir um ponto de vista único por uma multiplicidade de outras perspectivas. O teatro pode mostrar ao mesmo tempo um mundo em várias dimensões, enquanto o cinema, ainda que procure desde sempre o relevo, fica confinado a um único plano.
Os homens do teatro são uma espécie de caçadores furtivos que, servindo-se do que têm à mão, procuram em todas as áreas o que pode ser útil e operacionalizam no fazer saberes e métodos de todas as disciplinas, a função das práticas teatrais no interior da estrutura social será a de descobrir relações ou ligações entre as áreas do saber,
provocando encontros, motivando projectos e inventando novas práticas que obriguem a sair do pensamento encaixotado, a não se deixar fechar dentro do politicamente correto, a arriscar afrontar o desequilíbrio, o imprevisto e a insegurança, trazendo para a comunidade a paixão e o mistério, a capacidade e a fantasia, a prospectiva e a utopia.
Carlos Fragateiro