Libertar o Espírito e Mudar as Mentalidades
“Nas alturas em que o reino do humano me parece mais condenado ao peso, penso que como Perseu deveria voar para outro espaço. Não estou a falar de fugas para o sonho ou para o irracional. Quero dizer que tenho de mudar o meu ponto de vista, tenho de observar o mundo a partir de outra ótica, e outros métodos de conhecimento e análise”.
Italo Calvino
Olho para os livros que tenho à minha frente e fixo o olhar em dois títulos: aRainha Jinga e Gungunhana. Se a primeira me era totalmente desconhecida pois nunca na minha vida tinha ouvido falar desta Rainha, o nome de Gungunhana é-me familiar e faz-me recordar uma foto dos meus tempos de escola onde um negro enorme estava sentado no chão e com as mãos presas, uma imagem que para mim significava a rendição de um rebelde africano e o poder dos portugueses em África.
Hoje, passados tantos anos da independência das antigas colónias, o meu conhecimento da história desses países não se aprofundou minimamente, limitando-se aos protagonistas dos movimentos de libertação. Como se a história destes países e de África tivesse começado com a colonização, como se não houvesse nada para trás.
E a verdade é que isto não se passa só comigo ou com os europeus colonizadores, passa-se também com os africanos que cresceram a ouvir uma história, a sua história, contada na perspetiva dos colonizadores, contada por aqueles que tiveram os meios necessários para a escrever.
O mesmo acontece com a forma como vemos o mundo, com as cartas ou os mapas que o representam. Há uns tempos, quando estava a discutir o potencial que representa o universo de mais de 250 milhões de pessoas que pelo mundo pensam e falam em português, pedi a um doutorando angolano para ir ao quadro e desenhar o mapa do mundo. Para surpresa minha, português e europeu, ele começou a desenhar o mapa pelo continente africano, e não pela Europa como nós o fazemos. Logo depois pedi a um brasileiro que desenhou o mundo a partir do continente americano. Se aí estivesse um macaense começaria pelo continente asiático, um timorense pelo australiano. E de repente percebes como era e é limitada a representação que tens do mundo, um mundo que deveria ter sempre a Europa no centro, olhasses para ele de que lado olhasses.
É então que percebemos as nossas limitações, é então que sentimos que a cabeça começa a rebentar, incapazes de deixar de visualizar o mundo como no mapa que estava sempre presente nas nossas escolas, com a América tão distante da China.
Quando estamos a perceber que alguma coisa tem que mudar, quando tomamos consciência que apesar de estarmos a fazer um esforço para abandonar o refúgio do nosso conhecimento disciplinar e perceber a importância do cruzamento das disciplinas para a descoberta do conhecimento, vimos que isso já não chegava pois parecia que havia outros lugares do mundo com quem também era preciso cruzar conhecimentos. E, tal como aconteceu com a visualização do mapa, a cabeça também começou a rebentar quando percebemos que para além do multidisciplinar também teria que haver um olhar multilocal.
Como se não bastassem todas estes desafios com que estávamos a ser confrontados, eis que chega a pandemia e somos obrigados a confrontar-nos com o facto de não haver muros ou fronteiras que nos defendessem, e, como diria Miguel Torga, a perceber que o universal era mesmo o local menos os muros.
Não havendo um Portugal dos Pequeninos que nos proteja, temos de assumir que o mundo é mesmo uma Aldeia Global, que somos hoje somos mais cidadãos do mundo do que dum país, e que o instrumento que hoje nos pode ajudar é a nossa língua, a língua que nos permite pensar, alargar horizontes, encontrar outros modos de olhar para as coisas e mudar, mudar as nossas práticas, o nosso quotidiano. Uma língua que, como diria o Manuel António Pina, nos pode trazer essa força misteriosa que nos inquieta e nos desafia a fazer tudo para inventar outros futuros, outros modos de vida. Uma força que nos ajuda a desenvolver a inteligência e a sensibilidade, que nos ajuda a ligar as coisas e a, tal como o Lobo Mau, a abrir os olhos para ver tudo à nossa volta, a abrir os braços para abraçarmos as nossas gentes, com umas grandes pernas para andar pelo mundo e uma boca para saborear as boas coisas que esta Terra Mãe nos dá.
Por vezes fala-se em mudar para que tudo fique na mesma, mas hoje temos mesmo de mudar e arrepiar caminho. Um processo que exige uma capacidade para olhar para o mundo, as suas memórias e os instrumentos tecnológicos e científicos que temos à mão, com a consciência que já antes estes futuros aconteceram. Basta ver como Miguel Torga se espantou quando chegou à Ilha de Moçambique:
«Louvado seja Deus Nosso Senhor! Até que enfim posso regressar sossegado, com a viagem justificada em todas as minhas exigências de homem e de português. Aqui, sim. Aqui a pátria chegou e sobrou. Aqui todos os que vieram se transcenderam, deram o melhor de si, mereceram a aventura e a glória. Que orgulho legítimo eu sinto a compartilhar este sincretismo de raças, de culturas, de fé e de sentimentos! Brancos, pretos, pardos e amarelos num convívio fraterno, os vivos a mourejar ombro a ombro, os mortos a repousar lado a lado. O dossel de um púlpito que lembra uma sombrinha chinesa, altares cristãos que parecem destinados a Buda, uma capelinha manuelina a dar guarida ao corpo do primeiro bispo do Japão. Ah, génio lusíada, quando acertas! Quando te não abastardas! Quando te medes com o impossível! Fazes de um banco de coral o centro geométrico da concórdia do mundo!»
Carlos Fragateiro