A Unidade Infância do Centro Cultural de Évora

Kikerikiste, 1980

Não me é fácil recordar, hoje, a Unidade Infância do CCE no meio de uma pandemia que nos impõe, a Portugal e ao mundo, uma luta sem tréguas pela sobrevivência física e pelo pão de cada dia. Nessa altura, desmoronado o fascismo às mãos de Abril, cantávamos a liberdade – no mínimo a democracia política e cultural – e sonhávamos com a arte ao alcance de todos.

A revolução em Abril e, logo em Maio, Mário Barradas parte para Évora, na companhia de Norberto Ávila, no sentido de preparar as condições de funcionamento da que ficou conhecida pela 1ª unidade da descentralização teatral. Em Janeiro de 1975, inicia os seus trabalhos e, ainda nesse mês, estreia a primeira produção o Centro Cultural de Évora.

Em Janeiro de 2000, na sessão comemorativa dos 25 anos do CCE/CENDREV, afirma Mário Barradas:

” O Cendrev fez desde o início escolhas muito claras: a do realismo antes de mais nada e a da poesia, de que o realismo se não separa.

E a escolha das obras. Das grandes obras dos grande autores. Dos clássicos portugueses e da literatura universal e dos grandes autores do séc XX (entre eles) o fundador do realismo moderno que é Bertolt Brecht.

Simultâneamente, conseguimos que funcionasse uma Unidade Infância que serviu gerações e gerações de crianças que, muitas delas, hoje integram os nossos públicos.

Recuperamos e conservamos a fabulosa tradição popular alentejana dos “Bonecos de Santo Aleixo” que demos a conhecer a todo o mundo.

Editamos e mantemos a publicação de uma revista de reflexão teórica e crítica que … reúne um leque de colaboradores nacionais e estrangeiros de grande qualidade (…)

E mantemos, em funcionamento desde Outubro de 1975, uma Escola de Formação Teatral que é a menina dos olhos do CENDREV e que formou actores e técnicos espalhados pelo país…”

Mário Barradas coloca aqui a Unidade Infância ao lado da escolha do reportório, da recolha e reactivação dos Bonecos de Santo Aleixo, da revista Adágio e da Escola de Formação Teatral como uma das dimensões importantes da actividade do Centro.

Não quer isto dizer que tenha tudo o mesmo nível de importância, claro que não. Mas que as coisas rimam umas com as outras é indiscutível. Durante a montagem que fiz, em Évora, em 1976, de O eucalipto feiticeiro, Jerónimo a tartaruga, de Catherine Dasté, antes de partir para França, para um estágio de um ano na Pomme Verte, que ela dirigia, falámos de uma componente para a infância, no Centro. E, alguns meses depois, de Sartrouville, respondi a uma carta de Mário Barradas enviando-lhe uma proposta com as coordenadas gerais de funcionamento do que veio a chamar-se Unidade Infância do CCE. De uma coisa tenho a certeza: era, sem dúvida, uma das suas preocupações importantes, pois Mário Barradas sempre fez teatro com os olhos postos no futuro.

O Centro Cultural de Évora e, depois, a sua Unidade Infância são criados num ambiente muito vivo e contraditório quanto à definição política, económica e cultural da revolução de Abril e da responsabilidade do Estado relativamente às artes, com as respectivas consequências em avanços e recuos.

No que se refere ao teatro, defendia-se então um sector público descentralizado de unidades de criação e difusão teatral, de que o CCE seria a primeira, sob a tutela da Secretaria de Estado da Cultura.

Por outro lado, competia ao ministério da Educação assegurar a alfabetização nas linguagens artísticas, onde pela primeira vez surge o Drama (1974/1975) quer nos programas do 1º ciclo (Movimento, Música e Drama) quer nos programas de formação dos professores primários (Movimento e Drama).

Em 1977/78, não havia ainda professores em número minimamente suficiente que tivessem frequentado, durante a sua formação inicial esta nova “disciplina”. Como refere R. Fernandes, “Os professores que ensinavam nas escolas tinham feito a sua formação com base em programas de 1942 que, com ligeiras modificações introduzidas em 1960, permanecem quase imutáveis até Outubro de 1974. (1)In Rogério Fernandes, Educação: uma frente de luta, lisboa, Livros Horizonte, 1977, p.22 ).

Ma Liang, 1978

Quase dez anos depois, em 1986, diz A.Nóvoa: “não queremos deixar de salientar o papel primordial desempenhado por diversos grupos de teatro para a infância e a juventude na difusão das práticas de expressão dramática. Estes grupos, desde muito cedo, sentiram a necessidade de coordenar a sua acção com as actividades escolares, razão pela qual assumiram uma atitude pedagógica que os vocacionou para um trabalho muito útil junto dos professores de diferentes graus de ensino”. Mas, no mesmo texto, o autor, não deixa de chamar a atenção para a necessidade de a prática da Expressão Dramática ‘passar de uma atitude empirista — organizada a partir da intuição e de forma algo impressionista — a uma perspectiva científica‘.(2) Para a história da Expressão Dramática em Portugal, in Uma aprendizagem da descoberta, caderno de textos de apoio ao III Encontro Internacional de Expressão Dramática, Lisboa, 14 a 26 de Set de 1986, p.9, Lisboa, s. ed. 1986, p.10)

É neste contexto que situamos as actividades da Unidade Infância, conjugando a produção de espectáculos com as actividades escolares, desenvolvendo um trabalho consequente junto dos professores.

Mas o Drama na educação, isto é a prática das actidades dramáticas com as crianças, era então, um conceito vago e as práticas diversificadas, por vezes, contraditórias. Do estrangeiro chegavam-nos, dum lado, abordagens próximas da iniciação à linguagem do teatro que, por ser com crianças, se designavam por jogo dramático. Esta abordagem era predominante em França, desde Léon Chancerel (1936) a Jean-Pierre Ryngaert. De outros lados anatemizavam-se essas práticas (de iniciação a uma linguagem) previligiando a actividade de expressão pela acção, recusando-se a articulação dessa expressão em linguagem, pôr cá fora o que se tem lá dentro, aqui e agora, sem qualquer tentativa de aproximar essa exteriorização a qualquer linguagem. Nada de dar forma à expressão. Recusava-se a ficção. Une action globale qui s’attache à un individu global. Esta corrente espalhou-se por muitos países com a designação de Expressão Dramática. Lembro que Gisèle Barret, a figura emblemática desta corrente, incluia a estetização como uma das tentações da Expessão Dramática.

Por sua vez, entre nós, em 1971, no âmbito da reforma do Conservatório Nacional, dirigida por Madalena Perdigão, é criada a Escola de Formação de Professores de Educação pela Arte, depois designada Escola de Educação pela Arte, cujas figuras tutelares era gente de grande gabarito e prestígio, como Glicínia Quartin, Rui Grácio, João Mota, Arquimedes da Silva Santos e outros. Mas, até ao momento, não tinha tido ainda a possibilidade de lançar jovens educadores pela arte na área da educação formal de maneira significativa. De tal forma que, a partir do ano lectivo de 1975/76 o recrutamento dos professores de Movimento e Drama para leccionar nas Escolas do Magistério era feito dando prioridade aos titulares do curso de Teatro.

Quanto ao teatro para a infância, entre nós, até às vésperas da revolução,–ressalvadas honrosas excepções como p.e. Feliciano e as batatas, de Catherine Dasté, montado pel’A Comuna, em 1972 — era retrógrado e de um tradicionalismo assustador. Já em 1975 estreia outro espectáculo de grande êxito, Bão, de João Mota, de novo na Comuna e, em 1976, A Cornucópia monta As Músicas Mágicas, de Cathene Dasté. Refira-se a repercussão nacional e internacional que teve, à época, esta actriz e encenadora — neta de Jacques Copeau e filha de Jean Dasté — que criava espectáculos a partir de histórias inventadas por crianças, em actividades orientadas por ela, e que desenhavam também os cenários e os figurinos. Esta prática vem a ser abandonada em 1976 por razões que a autora justifica na altura. O reportório do teatro para a infância era, em geral, fraco o que leva muitos grupos a criar os textos dos seus próprios espectáculos, a partir de criações colectivas, improvisações dos actores orientadas por um encenador, a dramatizar contos tradicionais e a incentivar os autores dramáticos a escrever para o público infantil e juvenil. A Unidade Infância ensaiou três destes caminhos: Os Palhaços, improvisação dos actores, orientados por um encenador; Ma Liang, adaptação de um conto tradicional chinês; Kikerikiste, texto de autor.

Encontro internacional

Sentindo a necessidade de se encontrar e discutir estas matérias com profissionais de teatro e académicos que se dedicavam a estas matérias abrindo essa discussão aos diretamente empenhados, quer no teatro quer na formação de formadores em actividades dramáticas, a Unidade Infância consegue criar condições para organizar um Encontro Internacional de Teatro para a Infância, de 21 a 28 de Outubro de 1977, integrando:

– A apresentação de espectáculos durante o dia, para as escolas, e a sua apresentação e discussão entre os participantes e o público de Évora, à noite.

Sete grupos de teatro (quatro portugueses e três estrangeiros) apresentaram sete espectáculos mostrando perspectivas diversas de trabalho teatral dirigido ao jovem público o que correspondeu a 21 representações para quatro mil trezentos e treze espectadores, público constituído essencialmente por alunos das escolas da cidade e da região (durante as manhãs e as tardes) e, como já referimos, pelos habitantes de Évora e os participantes no encontro (à noite).

Citemos, para memória, o nome dos sete grupos e respectivos espectáculos que participaram no Encontro:

Group d’Actió Teatral (grupo profissional de Barcelona-Espanha); espectáculo: A cabeça do dragão, de Ramon del Valle Inclan; encenação de Enric Flores.

La Pomme Verte ( grupo profissional, de Sartrouville-França); espectáculo; Les mots n’ont pas d’écailles, de Françoise Pillet; encenação da autora;

O Bando ( grupo profissional, de Lisboa); espectáculo: Auto dos Altos e Baixos; criação colectiva, sob a direcção de João Brites;

Teatro Combate do Cartaxo (grupo amador do Cartaxo); espectáculo: O sonho do Palhaço; criação colectiva.

Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra; (Grupo amador) espectáculo: O Passarinho branco, de Émile Esbois; encenação de Deolindo Pessoa.

Teatro de Marionetas de Sibiu (grupo profissional de Sibiu-Roménia; espectáculo: Doce como o sal, de Alecu Papovici e Viniciu Gafita; encenação de Mircea Petre Suciu;

Unidade-Infância do C.C.E. (grupo profissional, de Évora); espectáculo: Ma Liang, de Domingo Oliveira; encenação de Manuel Guerra.

– O encontro incluía ainda dois debates acerca de temas que achávamos urgentes.

Os Palhaços, 1977

Assim, no dia 23 de Outubro, realizou-se uma jornada de discussão (manhã e tarde) sobre A problemática do teatro para a infância”. A discussão girou em torno do problema da especificidade ou não-especificidade deste teatro. Confrontaram-se posições muito diversas, por vezes opostas, mas com muitas nuances. Esteve no centro das discussões fundamentalmente o teatro enquanto arte, isto é, criação sem constrangimentos de qualquer espécie, portanto sem preocupações pedagógicas versus a sua pedagogização mais ou menos acentuada.

Animaram este debate diversos especialistas (encenadores, autores dramáticos, actores e professores), entre outros: Catherine Dasté, Françoise Pillet, Rémy Hourcade, (França); M. Braga, N. Rodean, Mircea Petre Suciu (Roménia); Juan António Hormigon (Espanha); Domingos Oliveira, João Brites, Norberto Ávila, Sérgio Niza (Portugal).

A 26 de Outubro, teve lugar uma outra jornada de trabalho (manhã e tarde) sobre A expressão dramática na educação”.

Após uma

  •  Panorâmica acerca do que se passava em alguns países, a propósito da problemática em questão: Jean-Pierre Ryngaert, pela França; Gisèle Barret, pelo Canadá e a Inglaterra; e Glicína Quartin por Portugal, o debate centrou-se nas seguintes questões:
  • Expressão dramática e jogo dramático;
  • Expressão dramática e teatro,
  • As actividades dramáticas na sala de aula.

Animaram esta jornada de trabalho universitários, professores, animadores, psicólogos e pedagogos responsáveis de diversas instituições: Gisèle Barret, Jean-Pierre Ryngaert, José Falleiro, Rémy Hourcade, Juan António Hormigon, Glicínia Quartin, Natália Pais, Sérgio Niza, António Nóvoa, Carlos Fragateiro, Domingos Oliveira, etc.

No âmbito do Encontro, e durante toda a semana, teve ainda lugar um estágio, para professores, actores e professores de Movimento e Drama das Escolas do Magistério, orientado por Jean-Pierre Ryngaert.

Ma Liang, 1978

Este encontro internacional teve um significado ao mesmo tempo real e simbólico a diferentes níveis:

– revelou que professores e animadores de diferentes domínios se sentiam implicados nas problemáticas em questão;

– os professores de Movimento e Drama compareceram em número significativo;

– As intervenções de Gisèle Barret e Jean-Pierre Ryngaert mereceram um interesse especial, revelando os participantes uma forte curiosidade em conhecer as suas obras. Os livros de Gisèle Barret foram imediatamente fotocopiados para muitos participantes e a Unidade-Infância comprometeu-se a traduzir para português o livro de Jean-Pierre Ryngaert, Le jeu dramatique en milieu scolaire, que veio a ser publicado em 1981.

Possibilitou, ainda, o confronto com espectáculos com temáticas e estéticas diversificadas.

Uma maior tomada de consciência dos problemas levantados pelas questões das actividades dramáticas na educação e de sensibilização dos diferentes actores no terreno.

Ele constituiu, também, um espaço de encontro e de trocas entre os especialistas de Movimento e Drama das Escolas do Magistério.

Além disso, possibilitou ainda a dois universitários estrangeiros — Gisèle Barret da Faculdade de Ciências da Educação, da Universidade de Montréal e Jean-Pierre Ryngaert, do Instituto de Estudos Teatrais da Universidade da Sorbonne Nouvelle, Paris III – a ocasião para confrontarem publicamente as suas teorias e as suas práticas e, desse modo, sensibilizar o mundo do teatro e da educação para as metodologias e práticas das actividades dramáticas com crianças e jovens.

Este encontro vem a ter, mais tarde, repercussões laterais dignas de registo: os contactos aqui estabelecidos e a necessidade de graduação dos Professores do Magistério Primário vai fazer com que alguns deles rumem a Montréal para aí fazerem os seus estudos orientados por Gisèle Barret.

O Encontro Internacional teve o seu encerramento informal no dia 28 de Outubro, à noite, à volta das mesas do bar do teatro Garcia de Rezende onde se bebia um copo, se petiscava umas tapas no calor da conviabilidade das últimas trocas de ideias e de contactos.

Nesta época, de 1979/80, os trabalhos de preparação do encontro internacional atrasaram a preparação da nova produção da Unidade-Infância. A estreia de Kikerikiste veio a ter lugar a 6 de Janeiro de 1980. Poderemos considerar esta data como o fim da experiência de que procuramos aqui dar conta.

EM JEITO DE CONCLUSÃO

Quarenta e quatro anos depois, como se poderá olhar, compreender e avaliar esta experiência? Como medir as consequências desta acção?

Hoje, num contexto histórico, social e cultural diferente, poderá ela ainda alimentar a nossa reflexão, ela própria alimentada por desenvolvimentos posteriores, a nível nacional e internacional, do teatro para a infância e das actividades dramáticas na educação, tendo em conta as contribuições da reflexão e das experiências inovadoras que procuram encontrar os caminhos urgentes da mutação e inovação educacional?

Prometemos regressar a esta questão se e quando a Revista Ler em Português julgar pertinente.

Coimbra, Janeiro de 2021

Manuel Guerra

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