Cláudio Hochman: Mulheres nascidas de um nome

Um projeto que atravessa fronteiras e oceanos.

Chama-se Cláudio Hochman, é português e argentino, descendente de avós polacos, a trabalhar entre mundos, cruzando muitas vezes o Atlântico de cujas duas margens faz parte. Mais conhecido como encenador e formador de teatro, é a escrita, e o texto “Mulheres Nascidas de um Nome” que nos faz trazê-lo aqui e mostrar como é possível fazer projetos ponte, projetos capazes de cruzar dois países, duas línguas, criando cumplicidades e fazendo as pontes necessárias para que um outro mundo, uma outra realidade possa ser inventada.

Cláudio, como se pode ver nos seus múltiplos projetos, dá a voz a cada pessoa, tornando-a ator ou atriz principal da sua própria vida, sabe pensar e comunicar a partir de duas línguas, o que é uma mais valia, e cria condições para que os projetos ganhem mundo e atravessam oceanos, como fez com as “Mulheres nascidas de um Nome”, para cuja montagem em Portugal mobilizou 159 mulheres/atrizes, e chegou à Colômbia, México, Brasil e Argentina.

E este é o espírito a que procuramos dar vida com o Ler o Mundo em Português, onde o que é prioritário é darmos voz àqueles que são construtores de pontes, aos jovens que são conspiradores do futuro, sem esquecer todos aqueles que contribuíram para que hoje pudéssemos falar dum universo da língua portuguesa, os pilares da memória ou os cromos da língua portuguesa.

LMP – Cláudio és argentino, és português, e estás sempre a fazer pontes e a cruzar este oceano e os países que falam e pensam em castelhano e o português. Como te movimentas tão bem neste universo ibero-americano, que pontos em comum ou divergência encontras entre as diferentes realidades e países que o integram?

Cláudio Hochman – Ontem pensava numa coisa muito simples, o clima. Curiosamente o clima de Buenos Aires e de Lisboa é muito parecido. Claro que ao estar em hemisférios separados quando lá é verão aqui é inverno, será que os corpos alguma vez terminam de acostumar-se, ou vivemos sempre com a memória do clima onde nascemos? Será por isso que as vezes sinto frio em agosto, ou calores abruptos em meio de janeiro.

Outras das diferenças é a ingerência da política na vida cotidiana. A sociedade argentina vive dividida e vocifera suas posturas quase com tanta paixão como quando Boca Juniors mete um golo e ganha um campeonato. Aqui a politica se mantem tíbia, afeta pouco o dia a dia e pouco se fala.

A diferença cultural é talvez o que mais me chamou a atenção. Os argentinos têm uma especial admiração pela cultura europeia, isto se explica porque a grande maioria dos habitantes de Buenos Aires tem a sua origem nos barcos. Anda por lá sangue espanhol, italiano, misturado com uma das comunidades judias mais grandes do mundo. E talvez seja dessa mistura, alimentada com carne de vaca, que surge uma produção cultural enorme. Mas a apetência de fazer teatro, cine, literatura, dança, musica, concorre com a fome do público que corre massivamente a devorar cultura. Aqui não tanto. Mas aqui consegui publicar seis livros (graças à Sociedade Portuguesa de Autores, Livros Horizonte, Bags of Books e ao Teatro Aveirense) coisa bastante mais difícil de realizar do outro lado do Atlântico.

Lá a gente faz tanto teatro como psicanálise. Há mais de quatrocentos espetáculos por dia (antes da pandemia) e se faz por necessidade, porque lhes é inevitável. Aqui sinto que são mais “subsídio-dependentes”. Fazem se há subsídio, lá faz-se e depois se vê, e em esse “depois se vê” se investe muita criatividade.

Grupo de Teatro / Performance, Sala Polivalente Gulbenkian. Fotografia: Paulo Fernandes Pedroso

E a língua… esse meio fantástico e maldito pelo qual nos comunicamos e expressamos…

Minha boca e minha mão nunca chegaram a domina-la! Meus olhos e meus ouvidos sim. Por isso consegui encenar, dar aulas e ler a magníficos autores portugueses contemporâneos como Gonçalo M. Tavares e Afonso Cruz, mas para publicar tive sempre que recorrer a tradutores.

As línguas, por irmãs e parecidas, as veces se me misturam, como aos meus avós polacos se lhes misturava o idish. As veces mando mensagens aos meus amigos argentinos em português, as vezes quando dou cursos em Espanha me surpreendo utilizando palavras portuguesas que tenho que pensar como se dizem em espanhol, as veces, no cotidiano, penso em português, mas sempre, invariavelmente, quando tento falar português todos os portugueses pensam que estou a falar em espanhol.

É verdade também que aqui se vive bem. Caminhar pelas ruas sem ter medo, atravessar a passadeira sem a certeza de ser atropelado e comer infinidade de sopas tanto em inverno como em verão!

LMP – Sei que no trabalho que estás a desenvolver na Academia do Inatel estás a ligar a trabalhar com a obra e os processos de criação de artistas plásticos dos dois lados do oceano. Como é que o estás a fazer e a partir da obra de que artistas, sabendo que contataram com 12 artistas de Portugal, Argentina, Uruguay, Mexico, Espanha e InglaterraEste processo tem provocado um maior interesse e conhecimentos pela obra desses artistas e pela realidade dos seus países?

Grupo de Teatro / Performance, Galeria Graça Brandão. Fotografia: Carla Madeira

Cláudio Hochman – Bem, em realidade não contratei ninguém, eram quase todos artistas que eu já conhecia pessoalmente, que gosto de suas obras, mas antes de explicar isso acho que é melhor por em contexto.

Quando eu tinha 15 anos tive uma experiência muito marcante quando entrei a um grupo de teatro e tinha vontade de reproduzir de alguma maneira algo de aquilo que tinha vivido e, por isso, há oito anos decidi dar aulas a jovens. Comecei com muito poucos e ao largo dos anos passaram pelo grupo mais de sessenta jovens. Alguns deles estão a estudar fora. Trabalhámos textos próprios e adaptámos clássicos, mas numa altura cansei-me dos textos teatrais e dos espaços tradicionais e decidi invadir as livrarias de Lisboa com cenas criadas a partir de textos de Gonçalo M Tavares. Depois dessa experiência tentei os Museus e Galerias de Lisboa. Foi há três anos e está a ser uma experiência incrível! O primeiro a abrir as portas foi o MAAT, mas depois fizemos performances na Gulbenkian, no Museu de Arte Contemporâneo Chiado, no Museu de Arte Antiga, no Museu Bordalo Pinheiro e em muitas Galerias. Trabalhamos a partir das obras das exposições e apresentámo-nos ao público nos Museus. Quando chegou a pandemia continuamos com nossos encontros online e então pensei que, além de continuar a criar e treinar, poderia convidar artistas plásticos de outras partes do mundo para que contem os seus processos criativos.

De Argentina participaram Pablo Schapira (vidro), Luna Schapira (video/collage), Mayra Luna (pintura e ceramica), Paula Socolovsky (pintura e ilustração), de Uruguay, Rocio Matosas (escultura e muralista), de Espanha, Cecilia Silva (retroprojeção), de Mexico, Jonathan Dai (maquilhagem), de Inglaterra, David Ben White (pintura e instalações), de Japón, Beniko Tanaka (sombras) e de Portugal, Beatriz Bagulho (ilustradora e animação) e João Vaz de Carvalho(pintura e ilustração). Para o final desafiei a Felipe Giménez de Argentina, de quem só conhecia e admirava seu trabalho, que aceitou gostoso o desafio.

Grupo de Teatro / Performance, Galeria Graça Brandão. Fotografia: Carla Madeira

Foi muito enriquecedor para nossos jovens escutar a outros artistas de diferentes latitudes, uns, jovens como eles, e, outros, já com muita experiência, habitar seus ateliers, fazer-lhes perguntas, ideias maravilhosas que nunca me passaram pela cabeça antes da pandemia.

E além disso conseguiram perceber como cada um faz da arte seu modo de vida. Com realidades muito diferentes, mas com a mesma paixão.

LMP – Como nasceu o projeto Mulheres Nascidas de um Nome e como é que conseguiste mobilizar tantas atrizes para o por em cena?

Cláudio Hochman – Comecei a escrever Maria, um dos textos do livro “Mulheres Nascidas de um Nome”, como um impulso. Nunca pensei que seria alguma vez dito num palco. Quando terminei de escrever li-o ao meu filho e perguntei-lhe se achava que podia funcionar no palco, ele diz-me que achava que sim, que podia experimentar.

Continuei a escrever mais textos a partir de nomes de mulheres. Quando cheguei aos 50 parei e convoquei 20 atrizes, com que já tinha trabalhado, para ver se os textos funcionavam para além do papel. Pedi-lhes para escolherem cada uma um texto e que o decorassem. Depois começamos a dizer os textos sem mexer nem uma sobrancelha e a um ritmo trepidante, tentando limpar toda expressão. Era difícil, mas a coisa funcionava. Essas 20 atrizes começaram a perguntar-me se podiam convidar mais mulheres. Assim chegamos às 80 em poucos dias. Depois pensei, eu tenho muitas alunas, porque não desafia-las? Assim se juntaram 159 mulheres que cada noite, durante um mês, no Teatro Carnide, alternadamente, iam dizendo os textos misturados com canções com nome de mulher que cantavam elas mesmas ou cantoras convidadas. Ao final faziam uma leitura espontânea dum fragmento de Maria. Foi uma experiência incrível, dessas que te marcam…

Sinaloa, México

LMP – E Mulheres Nascidas de um Nome saiu das fronteiras e está a ser levado à cena noutros países. Como é que isto tudo aconteceu e quais são os novos desenvolvimentos?

Cláudio Hochman – Como vi o que passava em Lisboa desafiei a outras artistas de diferentes partes do mundo. Assim, um grupo de mulheres de Colômbia fez umas fotomontagens, um grupo de mulheres de Sinaloa, México, fez um ciclo com leituras, coreografias, vídeos, canções a partir dos textos. Um grupo de Aveiro fez um espetáculo a partir do texto Maria, em Alcobaça mais de cem mulheres saíram à rua a dizer textos no dia da mulher, na Argentina a atriz Maria Estevez fez um espetáculo e um vídeo sobre o texto Maria e Luna Schapira e Elisa Ferreira, artistas plásticas, fizeram obras a partir dos textos que foram expostas no foyer do teatro junto com as ilustrações do livro de Beatriz Bagulho. Claudio Torres Gonzaga, ator e encenador brasileiro, vem a ver o espetáculo e decidiu faze-lo no Rio de Janeiro com atrizes de lá.

É bonito ver como a palavra espontânea transcende fronteiras, toca corações de diferentes partes do mundo. Os textos já estão traduzidos em inglês e possivelmente uma companhia de Londres com que já trabalhei se anime a fazer alguma coisa…

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